Iniciamos o ano com um enorme desafio político – um processo de revisão constitucional. Este é, talvez, dos exercícios parlamentares mais importantes e interessantes em que um deputado eleito pode participar. Entre tantos temas que considero fundamentais e pertinentes, existe um em particular que me inquieta profundamente e que desejaria que fosse debatido. Será que, após todos estes anos, ainda faz sentido existir, nos moldes actuais, um Tribunal Constitucional? Sei que a questão é polémica e pouco ou nada consensual, uma vez que o proveito tirado pelos maiores partidos do sistema constitucional é notório, mas se existe oportunidade para analisar e debater esta matéria é agora.
Em princípio, e segundo o art. 2º da CRP: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. Digo, “em princípio”, pois considero que a Lei Fundamental portuguesa é uma Constituição nominal, uma vez que existe um enorme desfasamento entre o texto constitucional e a realidade constitucional. Faz lembrar Karl Loewenstein, filósofo e político alemão, que desenvolveu uma tese que visava classificar os diversos tipos de constituições ontologicamente, afirmando que a Constituição pode ser normativa, nominal ou semântica. Na primeira, «a Constituição é como um fato que serve e é efectivamente usado». Na segunda, «a Constituição é como um fato que por enquanto está no armário, para ser usado quando o corpo político nacional crescer». E, finalmente, na terceira, «o fato não é honesto, mas apenas um disfarce ou um vestido de fantasia».
Acontece que o princípio da separação de poderes fica imediatamente condicionado pela alínea h), do art. 163º da CRP, que diz precisamente que “compete à Assembleia da República, relativamente a outros órgãos: […] eleger, por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções, dez juízes do tribunal constitucional […]”, o que, no fundo, se materializa numa decisão que nada mais é senão um consenso político entre os dois maiores partidos do sistema constitucional português: o PS e o PPD/PSD. Ainda que o Tribunal Constitucional seja composto por treze juízes, em que três deles são cooptados pelos seus pares que foram eleitos pela Assembleia da República, não é suficiente para garantir a independência do Tribunal. Deve-se, contudo, colocar a seguinte questão: será que a Lei Fundamental, ao consagrar nestes moldes o Tribunal Constitucional, não pretendeu abrir caminho a um modelo de interdependência de poderes entre o poder político e judicial? Talvez sim. Todavia, ainda que esta teoria considere que não existe uma violação do princípio da separação de poderes, mas sim um modelo de interdependência de poderes, não podemos deixar de questionar se os artigos 2º e 163º, al. h) da CRP não são inconciliáveis?
É verdade, tal como refere o nº1 do art. 202º da CRP, que “os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo”. Isso não quer dizer que, por ser o povo a eleger os deputados, estes devem nomear os juízes para o Tribunal Constitucional ou até para qualquer outro órgão jurisdicional. O que a norma determina é que, na medida em que é a Assembleia da República o órgão que detém o poder legislativo, os tribunais devem administrar a justiça aplicando as leis que os representantes do povo estabeleceram em nome do povo. Contudo, e infelizmente, é com bastante frequência que se confunde a beira da estrada com a estrada da beira.
Por esse motivo, é falacioso falarmos em independência dos tribunais, como se encontra expresso no artigo 203º da CRP, pois não conseguimos, nestes moldes, garantir efectivamente a independência do Tribunal Constitucional, ainda que este seja um tribunal “especial”. É comum ouvir-se a expressão, “na prática, a teoria é outra”, e, neste caso, não é excepção. Senão vejamos: como é que pretendemos garantir a independência do Tribunal Constitucional, se são os dois maiores partidos do sistema constitucional que, na prática, têm poderes para nomear os juízes? Alguém, no seu perfeito juízo, pensa que não será exercido qualquer tipo de influência por parte que quem nomeia sobre os nomeados? Bem, existe sempre alguém que, ou é muito optimista ou então muito aluado, e que desconhece a realidade portuguesa. Eu, que não me considero um pessimista, mas apenas céptico, tenho o dever de desconfiar destas nomeações. As relações interpessoais e políticas não devem nem podem ser ignoradas neste tipo de procedimentos.
Talvez a solução pudesse passar pela extinção do Tribunal Constitucional e pela atribuição desse poder de fiscalização ao Supremo Tribunal de Justiça, onde os juízes ascendem na carreira por concurso e em razão do mérito. Além de, assim, se garantir verdadeiramente a independência entre o poder jurisdicional e o poder político, também o Estado economizava recursos e diminuía a despesa. Deste modo, evitar-se-iam situações de juízes do Tribunal Constitucional saírem para deputados, e de deputados saírem para juízes do Tribunal Constitucional, aliás, como é o caso de Jorge Campinos, Luís Nunes de Almeida, Vital Martins Moreira e entre outros.
Quando o Tribunal Constitucional é chamado a pronunciar-se pela inconstitucionalidade de certos diplomas, todas estas relações interpessoais e nomeações têm um peso bastante significativo nas decisões finais, que não só violam o princípio da separação de poderes, como são autênticos empecilhos ao estado de direito democrático.
Se fosse chamado a pronunciar-me, pronunciava-me pela extinção do Tribunal Constitucional, e o mais rapidamente possível.