“Está? Preciso de ajuda. O meu marido teve um AVC há 10 anos e tem afasia [dificuldade de comunicação e de linguagem]. É muito complicado percebê-lo. Fez terapia da fala durante dois anos e teve alta. Mas eu não consigo compreendê-lo, com os filhos ainda é pior”, ouvia-se, do outro lado, a voz desesperada de uma mulher.

Outra mulher, com 40 anos, traduziu aquilo que ouviu no hospital: “Tu, afasia grave, fala, nunca mais”. Então, apesar das dificuldades foi procurar ajuda onde a esperança lhe abrisse a porta. Passados cinco anos, procurou o Instituto Português da Afasia (IPA) e eu perguntei-lhe o motivo de nos ter procurado. “Porque quero mais! Sou capaz!”, respondeu.

Por e-mail também chegam ao IPA mais desabafos: “Além dos próprios e dos familiares diretos, poucos são os que sabem o que é a afasia. (…) Nem os próprios médicos de outras especialidades sabem como comunicar com portadores de afasia, pensam que são surdos ou ‘maluquinhos’. O meu marido tem afasia há seis anos e foi muito complicado a adaptação e aceitação. Sinto que se tornou numa pessoa mais revoltada sabendo de todos os obstáculos que aparecem no dia a dia e principalmente na barreira que se criou no regresso ao trabalho”

Estas e outras histórias reais ilustram um problema que muitas pessoas com afasia e suas famílias enfrentam: a falta de suporte contínuo após a fase inicial de reabilitação. Portugal é um dos países europeus que mais investe na reabilitação de doentes após um AVC. No entanto, apesar dos avanços nos cuidados iniciais, ainda há um grande vácuo na reabilitação contínua, especialmente para aqueles que ficam com afasia. Esta é uma condição que afeta a capacidade de comunicação, com impactos profundos a longo prazo na vida das pessoas e na própria comunidade. Calcula-se que existam 40 000 portugueses com afasia devido a AVC.

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Em Portugal, a intervenção tradicional da terapia da fala na afasia foca-se principalmente nos primeiros meses após o AVC, quando a recuperação espontânea cerebral oferece uma janela de oportunidade para melhorar a linguagem. Contudo, esta abordagem, embora essencial, não é suficiente para fazer face às consequências psicossociais da afasia, como a comunicação disfuncional, o isolamento social, a disfunção familiar, a depressão e as dificuldades de reinserção social e profissional.

Neste aspeto, entra a Life Participation Approach to Aphasia, uma abordagem alinhada com as recomendações e com a evidência publicada nesta área, que vai além da reabilitação “focada nos défices”. Esta abordagem enfatiza a importância de ajudar os indivíduos com afasia a retomar atividades significativas, promover a inclusão social e fornecer suporte emocional contínuo no processo de adaptação a uma vida com esta realidade.

A nível internacional, os especialistas defendem que todos os profissionais e serviços, na continuidade de de cuidados, integrem esta filosofia e adaptem as suas práticas, apelando a uma visão biopsicossocial do problema. No entanto, em Portugal, prevalece uma estratégia redutora baseada no modelo biomédico, em que a lesão cerebral é a justificação para tudo. Como formadora do IPA tenho percebido que estas abordagens biopsicossociais ainda são “estranhas” para muitos profissionais da reabilitação. Além disso, a falta de acesso a apoio psicológico e neuropsicológico, a assistência social e a apoios na comunidade faz com que todo o investimento inicial não dê os frutos que todos desejaríamos: pessoas reintegradas, ativas e, até, contribuintes na sua comunidade. E isto tem consequências económicas para o país.

Fundar o IPA foi uma resposta direta a estas lacunas. Neste instituto, acreditamos que a vida é maior do que a afasia, ou seja, que mais do que “reduzir” o grau da afasia é fundamental ajudar as pessoas a viver com esta nova realidade. Combinamos o apoio individualizado com atividades em grupo (presenciais e online), criando soluções de comunicação aumentativa e alternativa e o desenvolvimento de competências para uma maior funcionalidade e autonomia.

Olhamos também para as necessidades dos familiares e cuidadores. Através de campanhas, criação de recursos, parcerias com instituições de saúde e projetos de investigação, temos procurado aumentar a compreensão pública sobre a afasia e promover um ambiente mais inclusivo e acessível para as pessoas com afasia. Porém, existe ainda um longo caminho a percorrer.

É imperativo olhar para a afasia como algo que é muito mais do que um problema a ser tratado nos hospitais, clínicas e centros de reabilitação, e se passe a ter uma visão mais alargada pois este é um problema social. Em última análise, só se irá conseguir reabilitar estas pessoas quando e se existirem melhores respostas na comunidade e mais acessibilidade comunicativa.

Num país onde os custos com AVC são elevados, investir numa melhor formação de todos os profissionais de saúde sobre como comunicar com as pessoas com afasia (e outras perturbações da comunicação) bem como na mudança do paradigma de reabilitação é, sem dúvida, o caminho a seguir. Só assim, é que o telefone do IPA vai deixar de tocar.

Paula Valente é terapeuta da fala e mestre em linguística clínica. Trabalha com pessoas com afasia desde 2008. Fundou o Instituto Português da Afasia e, desde então, dedica-se exclusivamente à causa como diretora executiva, formadora e empreendedora social.

Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.

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