O alojamento local (AL) tem estado no centro de uma enorme polémica. A grande questão que se tem colocado nos tribunais portugueses é se uma assembleia de condóminos pode ou não proibir que o dono de uma fração autónoma destinada a habitação a afecte à atividade do AL. A resposta não é simples porque, conforme reconhecido no Acórdão da Relação do Porto (decisão de 15/09/2016), estão em confronto dois direitos ou interesses dificilmente conciliáveis entre si: por um lado, o direito do proprietário da fração “de obter melhores proveitos financeiros com a utilização da sua fração”; por outro, “o interesse dos condóminos em evitar que o prédio seja continuamente acedido por estranhos que apenas utilizam a fração temporariamente e logo são substituídos por outros desconhecidos, situação que potencia inevitavelmente o sentimento de insegurança, para além de poder gerar (…) situações de perturbação da paz, do sossego e da tranquilidade dos demais condóminos”.
Como também é consabido, a questão tem merecido tratamento diferente no seio dos nossos tribunais.
Num primeiro momento, a Relação do Porto (decisão de 15/09/2016) pronunciou-se no sentido de rejeitar a possibilidade daquela proibição. Reconhecendo que, conforme decorre da nossa lei civil, a qualquer condómino é vedada a possibilidade de dar à sua fração um uso diverso daquele a que é destinada, importaria compreender se dentro do fim “habitação” se compreenderia uma atividade como a do AL. Nesta reflexão, a Relação do Porto encontrou um argumento em sentido positivo, outro em sentido negativo: o facto de o AL ser definido, na lei, como uma prestação de serviços parece afastá-lo da noção de habitação; por outro lado, embora os conceitos sejam diferentes, o tribunal entende que o conceito de alojamento acaba por estar contido no de habitação (“proporcionar habitação é mais do que alojar, mas é também alojar”). Para ultrapassar este interregno, a Relação propõe-se (tentar) escrutinar a vontade que presidiu à constituição da propriedade horizontal, colocando a seguinte questão: “quando definiram que a fração autónoma se destinava a ser utilizada para habitação, os autores desse título queriam incluir ou excluir o alojamento temporário de turistas?”. Pergunta difícil de responder uma vez que, aquando daquela constituição, dificilmente o(s) proprietário(s) teria(m) em mente uma realidade tão recente e complexa como a do AL. Deste modo, mais do que interpretar aquela vontade, o que importaria era sanar uma lacuna. Donde aquele tribunal conclui que, perante o conflito de interesses em jogo, não se deve atribuir um valor decisivo às preocupações dos condomínios: “o direito ao descanso e à tranquilidade na sua própria habitação são dimensões do direito de personalidade de qualquer pessoa, pelo que sempre que esse direito seja violado ou posto em crise, o seu titular pode acionar os mecanismos de defesa do direito que a ordem jurídica coloca à sua disposição”. Proibir o alojamento local seria excessivo e desproporcionado, no entender da Relação do Porto.
A Relação de Lisboa enquadrou a questão de um prisma diferente. O facto de numa fração se exercer uma atividade com o CAE 55201 (alojamento mobilado para turistas) indicia que o uso dado à fração é comercial e não habitacional, acrescentando que as expressões utilizadas no título constitutivo da propriedade horizontal “devem ser interpretadas em função, não da sua eventual acepção normativa, mas do seu significado corrente”. Deste modo, destinando-se a fração autónoma, segundo o título constitutivo, a habitação, não lhe pode ser dado outro destino (alojamento mobilado para turistas). Esta decisão, nas palavras do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), “parece lavar numa enorme confusão”, já que, no entender do STJ (que veio revogar aquele acórdão), o facto de o proprietário ceder onerosamente a sua fração mobilada a turistas constituir um ato de comércio não significa que na fração se exerça o comércio, estabelecendo um paralelo com a atividade das agências imobiliárias: estas, quando arrendam frações que administram, praticam atos de comércio, sem que isso signifique que o uso dado às frações seja necessariamente o comércio.
Mais recentemente, veio a Relação do Porto (decisão de 27/04/2017, proferida por outros juízes) contraditar o primeiro acórdão deste tribunal. Acentuando o diferente enquadramento fiscal do AL (categoria B) e do arrendamento residencial (categoria F), o acórdão traça uma importante distinção: uma coisa é a verificação dos requisitos administrativos para efeitos de licenciamento da atividade do AL perante a Câmara Municipal (perspectiva administrativa ou urbanística); outra é a averiguação se o destino dado à fração diverge ou não do plasmado no título constitutivo (perspectiva civilística). Se a perspetiva administrativa/urbanística não levanta grandes questões teóricas (uma vez que o diploma que regula o AL requer apenas, para o exercício da atividade, a existência de uma autorização de utilização para o imóvel, sem especificar a necessidade de um determinado uso), a perspetiva civilística remete-nos novamente para o cerne da questão: sendo a fração destinada a “habitação”, podemos ou não considerar o AL como contido nesse conceito? Desta vez a Relação do Porto entendeu que não: “o sentido que um declaratário normal dá à palavra habitação, fora das típicas zonas de veraneio, é o de residência, domicílio, lar, o que pressupõe a permanência com alguma estabilidade. Exige a existência de alguma organização de vida”, pelo que não é de crer que nos títulos de constituição de propriedade horizontal se perspetivasse a existência do AL em zonas marcadamente residenciais.
O impasse em que nos encontramos é negativo porque coloca inúmeros moradores e investidores numa situação de incerteza: os primeiros não sabem como reagir ou que direitos lhes assistem perante esta nova realidade; os segundos não sabem se podem investir com segurança na aquisição de frações com o intuito de nelas levar a cabo a atividade do AL. A resposta a este impasse não é fácil porque, conforme referi, coloca em colisão dois direitos ou interesses de assaz importância, mas dificilmente compatíveis entre si (assumindo, claro está, que a generalidade dos portugueses não quer que os seus vizinhos passem a usar as suas frações para a atividade do AL).
Seria um erro perpetuarmos esta discussão e limitarmo-nos a aguardar por um acórdão uniformizador de jurisprudência, remetendo assim uma decisão (que deverá revestir natureza política) para o STJ. O conteúdo dos acórdãos acima elencados é importante para a discussão e decisão política, sobretudo por nos sensibilizarem e alertarem para os interesses/direitos em jogo, mas a decisão final sobre esta matéria deverá caber ao Parlamento. A decisão de um tribunal gravitará sempre em torno da questão de saber se uma atividade como a do AL se enquadra ou não no conceito de “habitação”, conforme definido no título constitutivo, sendo este enquadramento manifestamente redutor do problema. Imaginando que o STJ responderia em sentido negativo a esta questão, correríamos o risco de ter as assembleias de condóminos de quase todos os prédios do país a proibirem a atividade do AL – circunstância que seria manifestamente penosa e lesiva para a nossa economia. Como tal, é urgente que o legislador se debruce sobre este assunto e procure encontrar uma solução o quanto antes.
O que fazer então? A meu ver, e assumindo desde já que (i) é compreensível que os turistas causem, regra geral, mais ruído no prédio do que um inquilino habitual (uma vez que aqueles aqui se encontram em regime de férias, sem as quotidianas preocupações de cumprimento de horários), (ii) esta circunstância é potencialmente causadora de prejuízos para os restantes condóminos, pondo em causa expectativas legitimamente criadas (como reagiríamos se todas as frações do prédio em que residimos, à exceção da nossa, passassem a ser utilizadas para a atividade do AL?), (iii) atribuir um poder absoluto de proibição aos condóminos seria excessivo e poderia pôr em causa uma atividade que se reveste, atualmente, da maior importância para o país em termos económicos e de criação de emprego, entendo que a solução para esta problemática deverá passar por permitir à assembleia de condóminos deliberar duas coisas: em primeiro lugar, um agravamento do montante pago pelo proprietário da fração em AL a título de despesas de condomínio, podendo este suportar, no máximo, um valor correspondente a, por exemplo, o dobro ou o triplo do que suportaria em circunstâncias normais (aliviando o montante pago a este título pelos restantes condóminos, que assim se vêm compensados pelo eventual transtorno criado); e, em segundo lugar, exigir ao proprietário da fração em AL que recolha, junto de cada um dos utilizadores daquela fração, um “termo de responsabilidade”, mediante o qual estes se comprometam a respeitar as regras de funcionamento daquele edifício, destacando as de maior importância (e alertando, por exemplo, para a possibilidade de aplicação de multas ou de expulsão imediata em caso de incumprimento dessas regras).
Reconhecendo que, perante os interesses em jogo, nenhuma solução será perfeita, penso que uma solução nestes moldes será mais justa e equilibrada do que simplesmente conferir à assembleia de condóminos a prerrogativa de proibir o AL no edifício em causa, como já defendido por alguns partidos com assento parlamentar. Basta olhar para os números de um estudo recentemente divulgado para perceber que a atividade do AL se reveste de uma importância demasiado grande para ser tratada com tamanha leviandade. Todos agradecemos que não matem, por preconceito ideológico, uma das nossas (poucas) galinhas dos ovos de ouro.
Advogado