No passado dia 27 de Março, apareceu publicado no portal dos jesuítas em Portugal, Ponto SJ, um artigo do Padre João Manuel Silva, sj, intitulado “Ambivalências numa Igreja em mudança, em que o autor comentava a recente resposta «negativa» da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) à questão «sobre a bênção de uniões de pessoas do mesmo sexo», resposta essa, subscrita pelo Prefeito da referida Congregação, o jesuíta cardeal Luis Ladaria, nomeado já pelo Papa Francisco, também ele jesuíta, como é mais que sabido. A resposta ao Quesito, foi publicada juntamente com uma Nota explicativa, no passado dia 15 de Março, que pode ler-se aqui.

Curioso e pouco usual, foi não só o facto de que o documento foi levado ao Papa não pelo Prefeito da CDF, como é habitual, mas pelo Secretário da Congregação, mas também o teor pouco comprometedor da fórmula usada no final: «O Sumo Pontífice Francisco, no curso de uma Audiência concedida ao abaixo assinado Secretário desta Congregação, foi informado e deu o seu assentimento à publicação do mencionado Responsum ad dubium, com a Nota explicativa anexa». Nem sequer é afirmada uma simples aprovação do documento pelo Santo Padre, nem uma ordem para que seja publicado; como se lê, apenas foi informado, dando o seu assentimento para ser dado a conhecer ao público. Devido, digamos, a estas indeterminações protocolares, surgiram de imediato imensas discussões a respeito da maior ou menor concordância do Papa, assim como inúmeros artigos de bispos, padres e teólogos discordantes, mas também de outros concordantes com o documento que, pela própria natureza da Congregação que o emite, não pode deixar de ter alguma autoridade magisterial, até porque se fundamenta em numerosos outros documentos anteriores do próprio Magistério eclesial.

No entanto, há que concordar que a Nota explicativa, ao afirmar que «A presença, em tais relações [ou parcerias entre pessoas do mesmo sexo], de elementos positivos, que em si são dignos de ser apreciados e valorizados, não é, porém, capaz de torná-las honestas (…)» (itálicos meus), levanta algumas dificuldades de coerência, as quais, aliás, o artigo do Padre João Manuel Silva não deixa de aproveitar. De facto, o Catecismo da Igreja Católica, no seu nº 2357, mantém o seguinte: «Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves (Gn 19, 1-29; Rm 1, 24-27; 1 Cor 6, 9-10; e 1 Tm 1, 10), a Tradição sempre declarou que “os actos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados” (CDF, Declaração Persona humana, n. 8)». Consequentemente, parece legítimo e lógico perguntar como é que relacionamentos, esporádicos ou estáveis, onde sejam de facto praticados actos avaliados desde sempre pela própria Igreja como intrinsecamente desordenados, podem agora apresentar-se com «elementos positivos, que em si são dignos de ser apreciados e valorizados»?

Foi nesta vaga de contestação a um documento que, pese embora aquela ambígua afirmação, genericamente «não representa qualquer surpresa ou novidade», que surge o artigo recém-publicado no Ponto SJ – de que «os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial» (sic), embora afirmando que «os textos de opinião vinculam apenas os seus autores» (sic).

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Para que fique claro como me situo actualmente em termos de “sensibilidade” teológica, aceito o simplista, mas de facto prático epíteto de conservador-tradicional, mas não o de tradicionalista: gosto de aprofundar a recta doutrina da fé, em fontes eclesiasticamente autorizadas – das quais destaco o Catecismo da Igreja Católica (1992), fruto maduro do Concílio Vaticano II e de João Paulo II. Doutrina esta, sem a qual não posso conhecer a Pessoa de Jesus Cristo, que vive ressuscitado e me é transmitida infalivelmente (advérbio ousado, nestes dias…) na e pela Igreja Católica; e sem o que, portanto, não posso amar e adorar o mesmo Jesus, único revelador do Pai, e único Salvador e Redentor de todos nós.

Também julgo oportuno declarar que não tenho qualquer preconceito relativamente às pessoas com tendências homossexuais e que não as reduzo, limitando-as a essa condição. Para mim, enquanto médico e cristão, antes de tudo o mais são pessoas que procuro acolher enquanto tais. Apenas como católico não me é obviamente indiferente a saúde da sua alma (e até do corpo), necessariamente em risco quando se entregam e alardeiam práticas que envolvem actos sexuais nesse âmbito. Ao longo dos meus quase 70 anos, como médico e também socialmente, travei naturalmente conhecimento com pessoas assim. E com algumas até tenho mantido uma respeitosa e honesta estima, incluindo no meu vasto âmbito familiar e social. E quanto à verdadeira culpabilidade subjectiva dos seus eventuais actos homossexuais, não tenho qualquer dúvida em afirmar que só Deus absolutamente a conhece e a ajuíza! Nem eles próprios o poderão fazer. E não ignoro a desgraçada existência e a crescente tolerância – e até influência – da homossexualidade praticada em certos sectores no interior da própria Igreja, por esse mundo fora…

Feitos estes esclarecimentos, vamos então ao artigo do Padre João Manuel Silva. Depois de dois breves parágrafos introdutórios, divide-se em quatro secções, assim tão significativamente intituladas: 1) O Vaticano II e a emergência de um novo paradigma eclesial; 2) Resistência à implementação do novo paradigma – o caso da moral sexual; 3) Discernir os sinais de Deus na realidade das relações entre pessoas do mesmo sexo; e 4) A ambivalência causada pela resposta da CDF.

Diz o autor na secção 1: «(…) a contínua revelação do amor de Deus, cuja plenitude se realizou na vida de Jesus Cristo, tal como nos é transmitida pelos Evangelhos». Pergunto: estamos na sola sriptura luterana? É isto que ele entende ser o modelo de «um novo paradigma eclesial»? Não é possível omitir o que nos afirma a Dei Verbum (DV) do Concílio Vaticano II (CV II), nº 9: «A sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura estão intimamente unidas e compenetradas entre si. Com efeito, derivando ambas da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo; a sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, para que eles, com a luz do Espírito de verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação; donde resulta assim que a Igreja não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas. Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual espírito de piedade e reverência» (itálicos meus).

Diz o autor na mesma secção 1: «O Magistério da Igreja está, também ele, ao serviço dessa Verdade, não sendo seu exclusivo detentor». Ora, diz a DV, nº 10: «O encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único da fé tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado» (itálicos meus).

Cita ainda o autor o seguinte excerto do discurso de inauguração do CV II, proferido pelo Papa João XXIII: «“O magistério tem um carácter prevalentemente pastoral”». Não será mais relevante o que o mesmo Papa disse antes da citada afirmação: «O que mais importa ao Concílio Ecuménico é o seguinte: que o depósito sagrado da doutrina cristã seja guardado e ensinado de forma mais eficaz». E que dizer da frase completa pronunciada por João XXIII de onde o autor do artigo omite engenhosamente, na sua citação, a parte inicial: «Uma coisa é a substância do “depositum fidei, isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance. Será preciso atribuir muita importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração; e dever-se-á usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo carácter é prevalentemente pastoral» (itálicos meus). «Conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance», afirmava o Papa João, referindo-se implicitamente ao que São Vicente de Lérins, em meados do século V, havia afirmado na sua obra magna, intitulada Commonitorium (cf. XXIII, 3, sobre o possível progresso da religião).

Diz ainda o Padre João Manuel: «A história e vida daqueles a quem se destina a doutrina – porque precisamente nelas Deus também se revela – não só não pode ser ignorada na formulação doutrinal, mas constitui precisamente uma das suas fontes». Não afirma o CV II, na mesma DV (nº 10) o seguinte?: «Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único da fé tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado. É claro, portanto, que a sagrada Tradição, a sagrada Escritura e o magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo desígnio de Deus, de tal maneira se unem e se associam que um sem os outros não se mantém e todos juntos, cada um a seu modo, sob a acção do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas» (itálicos meus). Como é que é possível então afirmar que «a história e a vida das pessoas» – pecadoras como todos somos! – pode constituir, em si mesma e nessa condição, também ela uma fonte credível da revelação divina pública?

Passemos rapidamente à secção 2. Afirma o autor: «Nas últimas décadas, a visão das ciências humanas e da sociedade sobre a homossexualidade tem conhecido uma rápida mudança. Embora o comportamento sexual entre pessoas do mesmo sexo seja conhecido por grande parte das sociedades humanas em todos os tempos, a ideia de orientação afectiva, emocional, erótica, espiritual e sexual de uma pessoa em relação a uma outra do mesmo sexo, como variante da sexualidade humana, é algo muito recente na história das ciências humanas». Que ciências humanas e que sociedade são essas que proporcionaram uma tal mudança de visão? Serão ciências credíveis? Estarão isentas de qualquer escrutínio válido? Aceitam-se assim, sem mais, como estando desprovidas de qualquer enviesamento ou de influências lobísticas? Com que fundamento credível se pode afirmar que «a ideia de orientação […] de uma pessoa em relação a uma outra do mesmo sexo, como variante da sexualidade humana, é algo muito recente na história das ciências humanas»? (itálico meu). E quanto à referida sociedade: não vive ela de facto como se Deus não existisse e com elites e influentes indiferentes a qualquer noção de lei natural?

Depois, nos parágrafos seguintes, ousa afirmar supostas dificuldades que a doutrina católica tem com a sexualidade «e com a homossexualidade em particular», que no seu iluminado saber, assente na «visão das ciências humanas e da sociedade» – no seu parecer, também fontes da revelação pública dos desígnios divinos – a Igreja apresenta porque não abandona «o velho paradigma pré-conciliar». Mas que descarada conversa é esta de rotura entre velho e novo paradigmas conciliares? Há agora uma outra Igreja?

E depois aquela afirmação de que «a doutrina não pode ser formulada sem atender à realidade, [etc.]». O conteúdo deste etc. é relevante. Mas de que realidade humana fala o autor? A do homem (e mulher) com a natureza decaída, feridos pelo pecado, o original e os cometidos, de cujo arrependimento nem sequer se ousa insinuar a necessidade, para que a misericórdia divina produza o seu pleno efeito? Ou daquela realidade imaginária e ingénua do primitivo bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau, isento de toda a culpa e responsabilidade, cuja posterior maldade é produto apenas da corrupção da civilização? Que modelo antropológico está na base das suas afirmações? O revelado por Cristo?

Agora na secção 3. Surge o parecer, ou melhor este conselho do Padre João Manuel Silva aos diversos «agentes pastorais» a «discernir quais as sementes da Verdade presentes nas relações, também com expressão sexual, entre pessoas do mesmo sexo» (itálico meu). Para a Igreja, serão porventura concebíveis quaisquer sementes da Verdade (com maiúscula no original, repare-se) em relações sexuais mantidas entre pessoas do mesmo sexo que a mesma Igreja classifica objectivamente como um dos «pecados que bradam ao céu» (sic) (cf. Catecismo da Igreja Católica, nº 1867; e Lv 18, 22 e 20, 13)?

Já na secção 4, adverte o autor: «Ao negar que a Igreja possa dizer bem (bendizer, abençoar) da união de duas pessoas do mesmo sexo que procuram responder o melhor que podem ao Evangelho, este documento pode constituir uma verdadeira pedra de tropeço [itálico no original] para muitos irmãos e irmãs que, como membros do Corpo de Cristo, procuram trazer à luz, da forma melhor que lhes é possível, o modo como se compreendem diante de Deus» (restantes itálicos meus). «O melhor que podem»; «que lhes é possível»: eu sinceramente compreendo. Mas como vislumbra aqui o autor as reais potencialidades de uma honesta abertura à Graça divina, dos Sacramentos, especialmente o da Penitência/Confissão, do são acompanhamento espiritual que merecem todas essas pessoas, no sentido da plenitude da conversão cristã? De facto, ele cita parte de uma frase do já célebre nº 305 da Exortação Apostólica Amoris laetitia do Papa Francisco e parte de uma outra do nº 308. Mas também podia ter recordado aos seus leitores esta outra do nº 307, da parte intitulada A lógica da misericórdia pastoral, cuja totalidade (nn. 307-312) eu próprio não esqueço: «A compreensão pelas situações excepcionais não implica jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece ao ser humano». Para já não referir tudo quanto o Santo Padre denuncia sobre a ideologia de género «chamada gender», no nº 56 da mesma Exortação.

Finalizo só com mais uma referência ao repto que o autor lança à Igreja portuguesa. Escreve ele, no final da secção 3: «Um documento que tem sido tão criticado pela sua rigidez, acaba por constituir um verdadeiro desafio à Igreja que caminha em Portugal (e não só!), que tem ainda tantos passos para dar quanto a este ponto». De que forma estarão os bispos portugueses (e neste caso também o Provincial da Companhia de Jesus) dispostos a responder publicamente a esta pública e lamuriante provocação? Deus sabe!

Rezo pelo Padre João Manuel Silva, sj. na esperança de que ele, especialmente na sua qualidade de sacerdote ministerial de Cristo Nosso Senhor, reze também por mim!