Graças a uma crítica no Expresso feita pelo José Mário Silva descubro o Rubem Braga. O Brasil tem uma tradição única de cronistas de imprensa. É como se alguns géneros literários se dessem melhor nuns países em vez de noutros. Os brasileiros receberam de Deus uma capacidade de observação do quotidiano limpa e leve. Não resisto a compará-los connosco, portugueses: nós somos sempre mais cerimoniosos e desnecessariamente atraídos por complicar. Rubem Braga preencheu o Século XX brasileiro com crónicas simples, fundas e graciosas.
Uma delas, escrita em 1948, chama-se “Sobre o amor, etc.” e trata de como “a idade alonga nossas distâncias emocionais”. “Agora começamos a aprender o que há de irremissível nas separações; pois quando estivermos juntos perceberemos que já somos outros (…) O amigo que procura manter suas amizades distantes e manda longas cartas sentimentais tem sempre um ar de náufrago fazendo um apelo. (…) Então já não se trata mais de amizade, porém de necrológio.” Talvez eu não tenha uma visão tão intensa mas concordo na substância.
Uma acusação que fazia aos meus pais já a recebo dos meus filhos: “por que gastam tão pouco tempo com os vossos amigos?” Apesar de haver falta de rigor na generalização, tendo em conta que sobretudo a vida em Igreja preenche o meu tempo e o da Ana Rute com muitos queridos amigos, compreendo o déficit que sentem os nossos miúdos diante das agendas nervosamente jovens deles. Por exemplo, na última semana a nossa Maria para mostrar Lisboa a um amigo brasileiro foi da Quinta da Regaleira ao Cristo Rei, da Boca do Inferno aos pastéis de Belém, num incansável vigor hercúleo.
A amizade certamente se medirá em tempo e espaço. Ou somos amigos aqui e agora ou parece que a amizade não existe. Mas ao Rubem Braga suplementaria uma sugestão. Sem dúvida que perdemos quando os nossos amigos estão distantes porque mudamos na ausência uns dos outros. Mas quando os amigos estão perto dá-se também uma mudança que é aquela provocada pela comunhão. Ou seja, o facto de a mudança poder matar a amizade precisa de reconhecer que também é a mudança que a torna boa. Todos os amigos que tive, tenho e terei participam no processo de me impedirem de ser o mesmo.
Não será esta uma razão para hoje lamentarmos um certo discurso que toma a amizade como um recurso de reconhecimento e manutenção identitária? Receio que estejamos tragicamente inclinados para procurarmos amigos que notem a visão que já temos acerca de nós mesmos e, em consequência, a confirmem. E a amizade como a possibilidade de sermos substancialmente alterados? E a amizade como a possibilidade de não sairmos os mesmos do encontro com os outros? E a amizade, afinal, como a possibilidade de uma vida realmente nova?
Uma das melhores coisas que me foi dada pelos meus melhores amigos foi tantas vezes me terem matado. Há uma dimensão de saudável necrológio numa boa amizade.