In Memoriam

A partida inesperada, prematura e ainda mal explicada do André Freire, quase no final de uma brilhante carreira de professor universitário faz não apenas confrontar-nos com a precariedade da vida, como questionar-nos sobre o uso que estamos a fazer desta dádiva e bênção do tempo, incerto, em que estamos vivos. O que deixa um professor quando parte depois de muitos livros e artigos científicos escritos e milhares de horas de leccionação? Bem, tudo depende da qualidade do professor. Todos nós nos lembramos da nosso(a) primeiro(a) professor(a) da instrução primária (primeiro ciclo). E de alguns bons professores que nos marcaram ao longo do nosso percurso escolar, não apenas pela sabedoria, mas pela paixão que tinham por ensinar, o gosto pela  sua área científica e a atenção que dedicavam aos alunos. O André terá deixado isto em muitos alunos que com ele se cruzaram. Estou certo que terá estimulado a procura do conhecimento por parte dos alunos, desenvolvido o seu espírito crítico e analítico, bem como transmitido o valor da integridade académica na investigação universitária.

A Sofia Serra-Silva, investigadora do ICS, sua ex-aluna e orientanda de mestrado, enviou-me este testemunho:

“O André foi um grande impulsionador da ciência política (CP) em Portugal, e em particular no ISCTE, onde hoje a CP está distribuída pelos três ciclos de estudos, tornando-se numa referência nacional no ensino e investigação nesta área disciplinar. Era um professor e investigador muito dinâmico, que para além de todas as atividades letivas, organizava ciclos de seminários extracurriculares, ciclos de cinema, as jornadas de ciência política em colaboração com os alunos. Trouxe um enorme dinamismo à CP no ISCTE. Mantinha uma relação próxima com os estudantes e procurava incluí-los nos seus projetos de investigação. Era um professor carismático que tinha genuíno interesse nas ideias dos alunos com que se cruzava. Marcou profundamente uma nova geração de politólogos que tem crescido substancialmente de ano para ano, pela obra que deixa, mas também pela sua capacidade de mentoria. Contrariamente a outros politólogos, o André conseguiu comunicar para os públicos interno e externo com grande sucesso: tanto para o grande público e os estudantes em Portugal, publicando vários livros de divulgação académica em linguagem acessível, como para uma audiência especializada e internacional, muitas vezes em reputadas revistas científicas em língua inglesa”.

Este testemunho reflete a onda de partilhas nas redes sociais, de outros tantos ex-alunos marcados pelo seu ex-professor.

Foi no meio académico que conheci o André Freire e participámos conjuntamente em várias iniciativas. Partilho aqui três desses momentos que revelam algumas das suas características pessoais.

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Em 2010, coordenou o livro saído em 2011  “Eleições e sistemas eleitorais no século XX português: Uma perspectiva histórica e comparativa, Editora Colibri, Lisboa. Pediu-me para escrever um capítulo e abordar, numa perspetiva comparada, boletins de voto de diferentes sistemas eleitorais e a forma como os eleitores têm, ou não, capacidade de revelar as suas preferências quer sobre partidos políticos, e plataformas políticas, quer sobre os candidatos e suas características pessoais. Depois de vários comentários disse-me: “Paulo, era importante que colocasses as imagens dos três tipos de boletins de voto em que é possível personalizar o voto”. Assim fiz colocando o boletim do voto duplo alemão (sistema misto de representação proporcional), o boletim do voto preferencial em lista da Dinamarca e o boletim do voto único transferível da Irlanda. O André percebia a importância da comunicação e das imagens que valem por mil palavras.

Em finais de 2011 quando o governo de Passos Coelho apresentou o Orçamento de Estado para 2012, indo muito para além do memorando assinado com a  troika, muitos de nós criticámos o plano orçamental de Vítor Gaspar. Mas foi o André que liderou o lançamento de um manifesto em Defesa da Democracia, da Equidade e dos Serviços Públicos que deu origem a uma petição (52/XII/I) que recolheu rapidamente 6579 assinaturas. Tratando-se de matéria de finanças públicas tivemos várias conversas sobre o conteúdo da petição, e fomos depois os dois recebidos em audição na Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública. O André sabia o que sabia, e também o que não sabia, e em função da eficácia do objetivo soube fazer pontes com pessoas mesmo que não estivessem alinhadas ideologicamente com ele que era o meu caso (em 2015 fomos ambos candidatos independentes à Assembleia da República, ele pelo Livre eu pelo PS).

Mais recentemente, convidei o André para assinar o manifesto pela reforma do sistema eleitoral. Também aqui temos terreno em comum (a necessidade de redesenhar os círculos eleitorais e aumentar a personalização do voto) e opiniões diferentes. Ele tem defendido o voto preferencial em lista eu o sistema misto de representação proporcional. Com a frontalidade que o caracterizava, e que lhe terá trazido alguns dissabores, disse que só se o manifesto fosse à partida aberto assinava. O manifesto é aberto, para ser inclusivo à diversidade de perspetivas sobre a reforma, e enfatiza as dimensões em que existe consenso e por isso assinou. Estávamos, agora, a trabalhar no projeto de reforma eleitoral. O André, em matéria de ciência política, não tinha opiniões, tinha convicções.

Como todos os humanos o André tinha qualidades e defeitos. Era uma pessoa frontal, dizia o que lhe ia na alma, às vezes de forma um bocado intempestiva e não tinha um feitio fácil. No meio universitário, onde nem todos são promovidos pelo mérito e muitos gostam de agradar a quem manda, terá tido vários anticorpos. Porém, a academia, o debate público e a sociedade civil ficaram mais pobres, como bem salientou o Presidente da República. Perdurará pela obra e pelo que transmitiu às gerações novas, seus ex-alunos. Nascido a 25 de Abril, o André era um rebelde, mas com causas.