Quando, no Verão de 1972, as vetustas telefonias das avós, protegidas por naperons e bibelots, tremeram ao som do improvável sucesso de Leo Chiosso e Giancarlo del Re, Parole, Parole, muito poucos foram os que – inebriados por imagens de soquetes brancas que deixavam entrever, ao luminescente sol de Capri, joviais tornozelos de colegiais assomando em estribos de Vespas que se afastavam ao som de acordes em technicolor – muito poucos, dizia, terão sido os que conseguiram alcançar, para lá da melancolia juvenil por um amor destroçado, a angústia por, à interrogação de Mina (Parole, parole, parole / Che cosa sei?), Alberto Lupo não conseguir responder senão com o spleen desalentado da modernidade (Soltanto parole tra noi) – mimetismo do diálogo de surdos entre a filosofia e a cultura moderna que a literatura tem, com pontual mas assinalável sucesso, procurado suprir.

À linguagem, o homem foi exigindo o cumprimento cumulativo de várias funções – intérprete do mundo, sedimentação da memória, regulador das paixões – sobre cujas leituras equívocas e esperanças goradas fomos adossando a nossa fragilíssima relação com o mundo, com os outros e com aquela arcaica bizarria – a verdade – em cujo rasto se foram decantando a poesia, o teatro, a retórica, a democracia e outras miuçalhas de idêntica serventia: começando em Platão e Aristóteles, passando por Descartes e Leibniz até Kant e Hegel, há uma linha ininterrupta que liga parole e verdade cuja fragmentação a modernidade inaugurou.

Na verdade, se é frequente vermos a história da época moderna reduzida à seca enumeração das suas perdas, já não é tão frequente assim vermos assinalada com idêntica frequência o facto de ter sido justamente a consciência dessas rupturas que abriu, por entre a canga daninha, clareiras epistemológicas onde se entrincheiraram os que reclamaram vocalmente a morte de Deus.

Sujeitemos, contudo, a emergência da modernidade à progressiva dissociação entre o mundo da Graça e o da Natureza, o da filosofia e o da teologia, entre o logos e theos, e talvez não nos surpreenda ter sido o discreto e recolhido labor de um monge franciscano do início do século XIV a decretar o desaparecimento de Deus do horizonte intelectual: arrancando Deus aos objectos da razão, William of Ockham proporcionou um vocabulário (parole, parole, parole), muito antes que a decretassem os garbosos bigodes de Weimar, à morte de Deus.

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Afirmando que o conhecimento não se ocupa senão daquilo que ele chamava universais (puras abstrações no espírito, conceitos, termos, parole enfim), e que, portanto, a scientia não o é das coisas, mas apenas de signos, de símbolos, William of Ockham abre o caminho para a libertação da linguagem do seu papel meramente referencial, fosse ela a mais literária, (sem a qual talvez não tivesse sido possível a invasão de prosaísmo que o iminente nascimento do romance revelaria) fosse a mais científica, sem o que jamais se teria autonomizado o discurso científico, nomeadamente no auge do pensamento matemático.

Sem Deus, liberto enfim da mordaça da tradição e da moral, o homem pôde então entregar-se, sem culpa nem remorso, ao culto deslumbrado de si mesmo, dos seus ditames, de uma linguagem só sua. Confrontado, como Caim, com o pesadelo da sua solidão dirige então para a ciência os seus anseios de redenção, exigindo-lhe um novo catecismo da salvação e novos mandamentos para uma nova beatitude, uma que às parole não exigisse já a verdade, mas segurança. Kafka, Orwell, Huxley ou os surrealistas muito nos teriam a dizer sobre isso.

Quando no contexto das iniciativas de Um Governo Mais Próximo (juro!)  António Costa nos brindou em hexâmetros dactílicos que “ontem foi ontem, hoje é um novo dia. Olhe para o céu, está tão bonito, adeus”, não foi aquela sua extravagante toleima em se considerar engraçado que impressionou; nem sequer aquele seu ar serventuário e feliz de empregado do mês do Leroy Merlin. O que impressiona é o vazio de qualquer coisa remotamente parecida com o esboço de uma ideia que se pudesse argumentar, contrapor, refutar. O que impressiona é aquele seu mundo interior completamente vácuo e despovoado das noções de vínculo, de comunidade e de esperança que a linguagem política deveria servir. O que impressiona é a distância desmaiada a que se encontra já a pureza inefável do veloz tornozelo daquela colegial que, em 72, connosco partilhava o sol de Capri. O que impressiona é este Verão de acumulados descontentamentos e indigências que nos leva a, reconhecidos e servis, agradecer penhoradamente esta penúria, tão familiar e tão doméstica, barrada a quartos de margarina e lambuzada de Capri-Sonne. De laranja, que é mais barato.