Está a tornar-se uma rotina. O Governo anuncia a mesma obra várias vezes para, depois, adiar ou suspender essa mesma obra. E o curioso é que o faz não apenas por causa das cativações do Centeno – fá-lo também por causa da obsessão ideológica de Costa.

Um exemplo particularmente caricato foi agora relatado pelo jornalista português que melhor acompanha os temas ferroviários, Carlos Cipriano, e conta-se em poucas palavras. No passado dia 31 de Julho o ministro do Planeamento e Infraestruturas, Pedro Marques, publicou um tweet onde se gabava de, na linha do Douro, se estarem a electrificar 58 quilómetros de via férrea. Isto apenas quatro dias depois de ter estado em Marco de Canaveses a anunciar a electrificação de apenas 16 quilómetros de via. Mais: nessa ocasião distribuiu um documento onde se revelava que a modernização dos restantes 42 quilómetros, que deviam ter entrado em obras em Junho, afinal fora adiada para Março de 2020. Foi uma espécie de desanúncio.

O ministro Pedro Marques publicou um tweet onde se gabava de, na linha do Douro, se estarem a electrificar 58 quilómetros de via férrea. Isto apenas quatro dias depois de ter estado em Marco de Canaveses a anunciar a electrificação de apenas 16 quilómetros de via.

Mas se o Douro fica lá longe e entre o Marco e a Régua não vivem assim muitos eleitores que notem as contradições do ministro, já numa linha suburbana como a de Cascais a desfaçatez só não tem limites porque a degradação do serviço afastou, nos últimos tempos, milhões de passageiros/ano daquela via. Quanto aos que restam estes já nem sabem bem onde começou o desinvestimento que permite que o material circulante tenha 60 anos. Se escutarmos apenas os propagandistas de um governo que vai a caminho de três anos de responsabilidade pelo estado do país (sendo que nos últimos 23 anos o PS foi responsável por 16 anos do que se fez ou não fez), mesmo que se trata do inevitável João Galamba, a culpa de 60 anos sem novas carruagens é toda do governo anterior. Acontece porém que Carlos Carreiras, presidente da Câmara de Cascais, tem-nos vindo a contar um pouco da triste história de como o investimento naquela linha já podia estar em curso na sua coluna no jornal i (aquiaquie aqui).

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O ponto essencial é este: em 2015 os presidentes das câmaras de Lisboa (PS), Oeiras (independente) e Cascais (PSD/CDS) negociaram com o governo de então um investimento de 259 milhões na linha de Cascais, sendo 135 milhões por via do Orçamento do Estado e de fundos europeus e 124 milhões de euros de investimento privado. O investimento privado resultaria de uma subconcessão que anteciparia a entrada em vigor, em 2019, da legislação europeia que prevê que todos os serviços que os ferroviários de passageiros passem a ser contratualizados por concurso público internacional.

Qual o problema desta solução? Naturalmente a subconcessão a privados. O PCP e o Bloco nunca a tolerariam. E António Costa, mesmo tendo estado no início das negociações desta solução como presidente da câmara de Lisboa, também nunca escondeu a sua repugnância ideológica por um caminho que envolvesse privados.

Um dia haveremos de saber quanto nos custa a aventura da municipalização da Carris, todo ela embrulhada em inúmeras promessas de melhor serviço que continuam por concretizar.

Sabemos aonde conduziu essa repugnância no Metro de Lisboa – a três anos de desinvestimento agora seguidos por muitas promessas de novos investimentos. A degradação do serviço chegou a níveis incomportáveis, porque todo o dinheiro que havia, e o que não havia, foi para as “reposições de direitos”. Eu próprio cheguei mesmo ao ponto de lamentar já não existirem greves no Metro. uma vez que entretanto faltavam carruagens ou a simples manutenção de escadas rolantes.

E um dia haveremos de saber quanto nos custa a aventura da municipalização da Carris, todo ela embrulhada em inúmeras promessas de melhor serviço que continuam por concretizar.

Mas regressemos à CP, onde com a ajuda de Carlos Cipriano podemos recordar o mal que vai:

  • a Linha de Cascais perdeu nada menos de 137 comboios por dia em sete anos. Um dos cortes de circulação ocorrerá já a 5 de Agosto, como anunciou despudoradamente o próprio gabinete do ministro, dizendo que é só uma redução “sazonal”;
  • o ministro Pedro Marques tem proibido o aluguer ou a compra de comboios rápidos de longo curso, não dando seguimento à proposta da anterior administração de comprar 35 unidades para as ligações internacionais e os comboios Alfa.
  • a CP tem de resto uma frota envelhecida, muitos comboios avariados e falta de pessoal nas oficinas, o que a coloca à beira do colapso. Isto enquanto o concurso público para comprar material circulante (mas só para algumas linhas) ainda nem sequer tem caderno de encargos;
  • uma carruagem histórica que um grupo de privados salvou da sucata há dez anos e ofereceu ao museu da CP vai agora a caminho de Barcelona porque corria de novo o risco de ir para abate;
  • na Linha do Oeste parece que a CP já é conhecida por “Camionetas de Portugal” tantas são as vezes que a empresa substitui comboios por autocarros. Aliás chegou-se mesmo ao caricato de uma delegação de deputados do PS que ia exigir a modernização dessa linha ter ficado apeada, tendo regressado a Lisboa de carro;
  • por causa do mau estado da via férrea a CP reduziu em Julho a velocidade dos comboios Alfa Pendular e Intercidades entre Lisboa e o Porto, o que levou a que viagem passasse a demorar mais 7 a 10 minutos. Ou seja, uma ligação que em 1980 demorava três horas demora agora apenas menos uns seis a nove minutos;

A história da ferrovia em Portugal é história de uma tragédia e não deixa de ser extraordinário que toda esta degradação se agrave nos dias de uma maioria que disse apostar no transporte público e muito especialmente no transporte ferroviário. Mas todos sabemos porque é que isto que isso está a suceder. Primeiro, porque a opção ideológica da maioria (e a defesa das trincheiras sindicais do PCP) levou a que se abandonassem todas as soluções que envolvessem investimentos privados e subconcessões. Depois porque, ao optarem por reposições que beneficiaram sobretudo os funcionários do Estado e das empresas públicas, os muitos ministros “somos todos Centeno” deste gabinete cortaram sem dó nem piedade no investimento público: em 2016 ele atingiu o nível mais baixo (em percentagem do PIB) pelo menos desde a década de 1940, o crescimento de 2017 foi ilusório e, no primeiro semestre de 2018, a diferença entre o orçamentado e o executado mostra que, de novo, as promessas orçamentais não são para cumprir e que a tarraxa das Finanças não se abriu.

A simples “devolução de rendimentos” ou a reposição das 35 horas, se calaram os sindicatos, não deixaram de criar uma enorme, e crescente, descrença nos trabalhadores, sobretudo nos que têm brio.

Como é óbvio assim não se fazem milagres – pior: assim nem se repõe o capital investido, o que se traduz em todas as degradações de serviço que descrevi. Mas como não se sai do paradigma de que o dinheiro tem de vir apenas dos impostos e de Bruxelas, o anúncio, em Março de 2016, por Pedro Marques, de que “o governo prepara a renovação da Linha de Cascais”, ou a sua promessa, um ano depois, de “200 milhões para a ferrovia”, nunca passaram na prática de propaganda sem correspondência com a realidade.

Por outro lado, a simples “devolução de rendimentos” ou a reposição das 35 horas, se calaram os sindicatos, não deixaram de criar uma enorme, e crescente, descrença nos trabalhadores, sobretudo nos que têm brio. Ninguém gosta de ver o serviço a degradar-se. Ninguém gosta de ver os utentes a protestar – pois são os trabalhadores que os ouvem, não os ministros nos seus gabinetes. Sobretudo ninguém gosta que lhes frustrem as expectativas, que lhes tendo prometido tudo, agora se confrontem com a estagnação ou mesmo com piores condições de trabalho.

Termino por isso com uma pequena história que considero reveladora. Um dia destes uma amiga minha levou um familiar à Estação do Oriente, em Lisboa, para apanhar um comboio e teve o cuidado de chegar meia hora antes para ter tempo de comprar o bilhete. A certa altura apercebeu-se que a fila nos guichets nunca lhe permitiria ter o bilhete a horas, e que havia vários guichets encerrados e algumas máquinas inoperacionais (para além de serem muito difíceis de utilizar). Foi então perguntar ao funcionário quanto tempo achava ele que demoraria, e teve como resposta um seco “o tempo que eu entender”.

Se este exemplo fosse um caso isolado atribui-lo-ia simplesmente à má criação ou má disposição de um trabalhador. Como conheço numerosos e bem recentes casos semelhantes noutros serviços públicos não posso deixar de pensar que só uma enorme saturação dos funcionários pode justificar este destrambelhamento. Uma espécie de “que se lixe” já que o Governo não cumpriu e também ele tem dado o sinal de que, no que toca aos utentes e a todos os que não têm voz corporativa, a atitude é mesmo a de “que se lixem”.

É pois assim que estamos e é assim que ainda nos continuam a dizer que a culpa foi dos outros. Já chega, não?