4L foi um icónico modelo produzido pela Renault entre 1964 e 1994. Há 30 anos atrás, em 1989, quando entrei para a Escola Agrícola de Rates, Póvoa de Varzim, um professor que tinha um desses carros e um humor imbatível, dizia-nos que a 4L tinha ficado em segundo lugar num concurso de aerodinâmica contra um frigorífico e que se baseava no princípio mecânico “o que não existe não avaria”. Talvez por isso foi o carro adotado pelo ministério da agricultura para os técnicos que nos visitavam para vigiar a execução dos projetos, fazer a inspeção sanitária da sala de ordenha ou as vacinações e controlo sanitário dos animais.
Recordei-me de tudo isto há um ano quando um técnico da Direção Regional de agricultura do Norte morreu abalroado por um camião dentro de um destes carros. Eu não o conhecia, não sabia o nome do senhor, ele trabalhava longe da minha zona, mas era amigo comum de dois amigos meus e reparei no assunto porque o primeiro recusou uma chamada minha por estar no velório e o segundo faltou a uma reunião para ir ao funeral. Nessa reunião, quando expliquei os motivos da ausência, disseram-me que havia uma notícia do acidente no jornal. Fui pesquisar, li até ao fim e reparei num comentário à notícia que chamava a atenção para a falta de segurança do carro conduzido pelo técnico, precisamente uma “Renault 4L”. Voltei agora ao google, não encontrei a notícia que li, mas noutros jornais fiquei a saber que o acidente terá sido a 10 de dezembro de 2018 em Ribeira de Pena, a vítima chamava-se José Pinto, era escuteiro e Técnico Agrícola, residia no Marco de Canavezes e pela hora (11h30) voltava certamente de alguma visita de campo para o seu gabinete.
As notícias não dizem se houve falha humana ou mecânica de algum dos envolvidos, mas é razoável pensar que dentro de um “jipe” atual, com proteções e airbags, mais adequado a quem tem de andar por caminhos de cabras, estaria mais protegido do que dentro de uma 4L que já devia estar no museu. Outro técnico da Direção Regional de Agricultura, já reformado, contou-me as peripécias de voltar de uma inspeção ao volante de um 4L com um barulho esquisito no motor, o credo na boca e a mão na porta, preparado para sair se acontecesse alguma coisa. A questão é que alguns destes carros ainda circulam pelo país ao serviço do Ministério da Agricultura, porque não há melhor para substituir.
Não quero com isto atacar a ministra da Agricultura que acabou de chegar e ainda não tive oportunidade de conhecer nem deitar as culpas para Capoulas, Cristas ou Serrano, ministros da Agricultura que a antecederam e dignificaram o cargo, e muito menos culpar os diretores regionais de Agricultura daqui ou de qualquer outra zona do país. Mas vale a pena olhar para este retrato das prioridades do nosso Portugal: enquanto se discute uma pista de gelo em Lisboa, o Estado português envia para as serras técnicos superiores ao volante de carros velhos, para assegurar coisas fundamentais como vigiar a sanidade animal, as novas doenças que ameaçam as culturas (vão à página da DRAPN e vejam os alertas de pragas e doenças) ou fiscalizar a utilização dos fundos comunitários nos projetos de investimento na agricultura.
A situação só não é mais grave nem motiva protestos dos agricultores porque ao longo dos últimos 30 anos o estado português transferiu para as confederações agrícolas as tarefas de formação e receção das candidaturas aos subsídios e transferiu para as universidades as funções de investigação e divulgação de conhecimento, mas, sobretudo neste último caso, valia a pena avaliar o que está a ser investigado e quanto desse conhecimento chega aos agricultores.
Caros portugueses, Senhor Presidente da República, senhor Primeiro-Ministro, Senhora Ministra da Agricultura, senhores e senhoras líderes ou candidatos a líderes da oposição, pensem nisto: as pessoas responsáveis por vigiar a nossa segurança alimentar, a nossa paisagem, a qualidade da nossa água, a boa utilização dos fundos comunitários ou fazer o levantamento de prejuízos de cheias e temporais, precisam de alguns carros novos. Podem ser a Diesel de nova geração com filtros de partículas ou híbridos, mas deixem os elétricos para a cidade que aqui no campo não temos carregadores rápidos nem queremos buracos gigantes para fazer baterias de lítio. Vejam lá se encontram dinheiro no orçamento ou se é preciso fazer um crowdfounding na net ou um leilão de ofertas à moda antiga. Eu dou o valor de um vitelo. Não vale muito, mas é o que temos.