Marcelo Rebelo de Sousa, entendeu, este ano, falar da História e dos modos certos e incertos de olhar para ela, de a sentir, de a viver, de a criticar, de a adoptar ou rejeitar, de a assumir. Foi um discurso interessante pelo inabitual, um discurso cuidado na forma, denso na substância, com mensagens abertas e sibilinas.
O Presidente da República deu-se, com certeza, conta da ofensiva de desconstrução da História de Portugal e dos níveis de paranóia litigante que atingiu, em vozes que reflectem uma importação grátis e acrítica de temas, problemas e agendas da Esquerda Radical americana. Pensou nesses excessos e, com a inteligência e o sentido político que se lhe reconhecem, também nos excessos a que a paciência desfeita dos portugueses, normalmente resignados e alheados, pode conduzir. E veio apelar, justamente, para a introdução de realismo e senso comum nas várias “narrativas” em competição.
Na História de Portugal do tempo do Estado Novo, as Navegações e Conquistas de Além-Mar tinham como causas essenciais, senão únicas, a Cruz e a Espada, a salvação das almas dos gentios ou a sua promoção e civilização e o alargamento do Império. Essa História não era só a do Estado Novo, era também a da Primeira República e até a da Monarquia Constitucional. Era assim, muito embora, no Estado Novo, um escol de historiadores da oposição – Jaime Cortesão, Vitorino de Magalhães Godinho, Luís de Albuquerque – escrevesse e publicasse alguns dos mais interessantes e importantes estudos sobre economia dos Descobrimentos.
E se os académicos do Estado Novo se dedicaram sobretudo a períodos mais remotos da História Nacional, deixaram para outros os tempos mais próximos, o século XIX. E sobre o século XIX, tínhamos já o Portugal Contemporâneo, de Oliveira Martins, um livro admirável, que teria merecido continuação, um livro de um grande realismo – e pessimismo – que traçava um retrato desencantado do liberalismo português e da classe política que o servia e dele se serviu.
Classe que não mudaria muito e que ainda está por aqui. Depois do Estado Novo e depois do regime instaurado pela revolução, que já dura há 47 anos, feitos e festejados em Abril, geralmente escamoteando todo um outro lado da História.
Os que na adolescência acreditámos e nos batemos por um certo Portugal, não podemos deixar de associar ao “dia da liberdade” e aos seus festejos a liberdade que, durante um ano e meio, nos foi negada; e de recordar as centenas de dirigentes e militantes dos partidos interditados no 28 de Setembro de 1974 e no 11 de Março de 1975 que foram presos ou que tiveram de emigrar. Ou os milhares de saneados do Estado e das empresas que, para sobreviver, tiveram também de sair do país. E, em África, as centenas de milhares que perderam tudo, os bens, a terra onde nasceram e cresceram, a identidade.
Mas tal não significa que não percebamos e até respeitemos muitos dos que estiveram contra nós e então venceram, aqui e em África. O que queremos, sim, e aí é que as contas da História ficarão equilibradas e certas, é que não prevaleçam sobre a verdade múltipla da História a mentira grosseira, a caricatura, a deformação, o cliché, com que, por táctica ou ignorância, os vencedores e a nova geração “activista” demonizam os que não se reconhecem na “História Antifascista” do século XX português que lhes querem contar.
A História dos factos, o acontecido, não muda. Mas apesar da crispação romântica à volta da ideia do Grande Gatsby de que o passado se pode reconstruir e repetir, sabemos que o passado está passado, e que não foi perfeito, e que não volta. Tanto o passado mitificado do antigo regime, como o passado da “festa revolucionária” e da gloriosa mitologia de Desenvolvimento e da Igualdade que não aconteceram, e que antes se deterioraram, em termos comparativos, em relação à Europa.
A tradição revolucionária portuguesa
As modernas revoluções portuguesas, as posteriores a 1820 – porque, de certo modo, a revolta de Lisboa de 1383 também foi uma revolução e a Restauração de 1640 foi outra – estiveram sempre dependentes de uma acção ou abstenção militar. Foram, à partida, movimentos de tropas, golpes de Estado ou revoltas pretorianas, secundados ou não pela população.
Outro aspecto importante da tradição revolucionária portuguesa tem que ver com as circunstâncias que levam à queda dos regimes. São os governos, as “situações”, que apodrecem e se degradam, mais que as oposições ou resistências que se tornam fortes e vencem. A revolução só chega, geralmente, como um golpe de misericórdia, uma eutanásia aplicada a um regime em crise de legitimidade ou popularidade.
Em 1820, depois das invasões francesas, com a Corte no Brasil e o rectângulo sob tutela dos Ingleses, o país – ou pelo menos o Porto e Lisboa, centros da economia e do poder – estavam fartos e queriam mudar. As ideias liberais estavam na moda entre a burguesia letrada, o exército e a aristocracia e davam alternativas de legitimidade. Os juristas e os interesses económicos do Porto mexeram a tropa. Ninguém se opôs e Lisboa seguiu o Norte. Em 1910, depois de D. Carlos ter sido assassinado em 1908 e João Franco afastado como bode expiatório do desastre que procurara parar, a Coroa ficou à mercê de um partido republicano que ganhara popularidade porque a monarquia não defendia as colónias. As poucas centenas de revolucionários da Rotunda e a artilharia dos navios de guerra revoltados fizeram o resto.
No 28 de Maio, também os conjurados, capitães e tenentes de Braga, com um general como “o chefe que os seguia”, tiveram a adesão de um país, da direita à esquerda, farto dos “Democráticos”. No 25 de Abril, o Estado Novo, sem o seu criador, artífice e protagonista, estava também em crise. O golpe militar triunfou, como a Revolução Liberal, o 5 de Outubro e o 28 de Maio tinham triunfado: perante a ausência de qualquer resistência (ou, em Abril, perante uma resistência que o próprio chefe do Governo desarticulou).
As resistências vieram sempre depois: em 1820 foi a reacção miguelista e a guerra civil de 1828 até 1834; em 1910, foram as Incursões de Couceiro e a permanente instabilidade; no 28 de Maio, foi o 7 de Fevereiro do ano seguinte e uma série de levantamentos até ao Verão de 1936. No 25 de Abril, foi o Verão Quente de 75 e o 25 de Novembro, que veio reequilibrar forças, mas que não teve aproveitamento político. E as Forças Populares que viriam depois tentar aprofundar o PREC pela violência armada seriam amnistiadas pelo regime, porque, afinal, apesar das bombas e das mortes, era um capitão de Abril e um certo espírito de Abril que estavam em causa. (veja-se o livro recente de Nuno Gonçalo Poças, Presos por um fio: Portugal e as FP25)
A Corte no Brasil, em 1820, o Ultimato inglês, em 1910, a disfuncionalidade geral do regime, em 1926, a guerra de África, em 1974, foram o elefante na sala; um elefante que estava bem à vista e que, ao mexer-se, partiu o que aparentemente estava intacto e que os poderes estabelecidos se esforçavam por mostrar que assim permanecia. Mas, na verdade, quando as coisas aconteceram já não havia muito a fazer.
Foi assim com o 25 de Abril: um golpe de misericórdia num regime que, havia muito tempo, deixara de ter resposta de legitimidade, além da Guerra de África. Agora, por ocasião do 47º aniversário da Terceira República, voltámos às hipérboles celebrativas, por dever de ofício e pela nostalgia que a avançada idade desta Terceira República e dos antigos revolucionários já explica. Houve ainda quem falasse na “magia de Abril”, mas os festejos lembraram mais o coro de um lar de idosos, a desafinar um “Grândola” de outros tempos.
Nas origens da revolução de Abril
E com “a magia de Abril” toldam-se duas realidades essenciais para o entendimento do acontecido: a fragilidade do anterior regime e as origens corporativas da revolução.
O exotismo institucional do regime, numa Europa ocidental de democracias pluralistas, como a Bélgica, a Espanha, a França, a Grã-Bretanha, ex-países colonizadores, consumou-se a partir do fracasso do “putsch” dos generais em Argel, em Abril de 1961, que deixou Portugal isolado na defesa do Império.
Curiosamente, a Guerra de África, começada em Angola em 1961 – e que determinaria o descontentamento pretoriano que levaria o Regime ao fim – dera um sopro de vida ao Estado Novo. Nesse Março de 1961, os ataques da UPA, no Norte de Angola, tinham acordado um sentimento patriótico há muito adormecido em Portugal. Esse sentimento foi transversal à velha oposição republicana que, guardando distâncias ideológicas, apareceu a manifestar-se patrioticamente com Salazar pela “defesa do Ultramar”. E, digo-o por experiência própria, foi também a partir desse sentimento de “pátria em perigo” que se fez a renovação na Direita, entre os jovens dos liceus e das universidades. Porque não éramos especialmente simpatizantes de ditaduras ou regimes autoritários; o que nos trouxe para a direita nacional foi precisamente a defesa de um Portugal de que o Ultramar fazia parte integrante, com os mais velhos de nós a irem para África nesse princípio da guerra, e outros mais tarde.
Salazar tinha despolitizado o regime e os seus partidários. Tinha, ele mesmo, uma formação política com pouco que ver com o fascismo, um movimento nacional-revolucionário, de partido único, voluntarista, nietzschiano no pensamento e na acção. Ao contrário, Salazar era um contra-revolucionário, um nacional-conservador com um ideário que misturava a tradição dos Papas Sociais com o empirismo organizador de Maurras.
Com inteligência política, sem medo e com a astúcia (ou a manha) necessárias, Salazar ligava pouco a ideologias, e nunca lhe passaria pela cabeça ter um partido único (característica essencial do fascismo) que tivesse de comandar e a que tivesse de dar contas. Aceitou e praticou algum folclore “afascistado” durante a Guerra Civil de Espanha, em que tinha fascistas como aliados objectivos. Mas usava um fato de três peças e nunca se sentiria à vontade de camisa verde, negra ou azul. E muito menos de bota alta.
O seu governo era formado por gente competente, tecnicamente capaz, honesta, mas pouco política. A política era só com ele. E criou um regime feito à sua medida, feito por ele e para ele, e que, por isso, ficaria armadilhado quando ele desaparecesse.
Foi o que aconteceu. Se não houvesse Império, Marcelo Caetano podia ter feito uma transição democrática, semelhante à espanhola. Ou ainda mais fácil. Mas a Guerra e o exotismo do regime não lhe permitiram ir além de uma abertura que durou até aos princípios de 1970. Depois, foi a tentativa do “salazarismo sem Salazar”, que não podia deixar de fracassar, fragmentando a base social de apoio; inclusive, os muitos que apoiavam o regime só pela defesa do Império.
Mas o que levaria “à conspiração dos capitães” – o cansaço das contínuas comissões nas guerras africanas – seria o Decreto 353/73, de Julho de 1973, do Ministro da Defesa, general Sá Viana Rebelo, criando o Quadro Especial de Oficiais (QEO). Por este diploma, os oficiais milicianos com experiência de guerra entravam para a Academia Militar e, fazendo uma espécie de curso rápido, ingressavam no dito QEO. Mas tal feria as “antiguidades” e alguns dos camaradas com cursos regulares da Academia Militar sentiram-se ultrapassados por esta espécie de “via verde” para neófitos. Foi este – e não a restauração da democracia e da liberdade – o ponto de partida das reuniões do que depois seria o MFA, como consta da exposição ao Presidente da República e ao Governo dos 51 oficiais do quadro permanente, dos quais 45 capitães, a prestar serviço na Guiné. Entre os signatários estavam nomes sonantes do futuro MFA, como Manuel Monge, Salgueiro Maia, Otelo Saraiva de Carvalho, Matos Gomes, Duran Clemente. E, no início, haveria ali, politicamente, de tudo – direita, esquerda, centro.
Os generais estavam, já então, divididos entre António de Spínola, Kaúlza de Arriaga e Costa Gomes. Silvino Silvério Marques, um general patriota e com o sentido dos problemas no terreno, tentou juntar essas pontas num entendimento entre Spínola e Kaúlza. Mas não teve sucesso. E o livro de Spínola, fazendo uma “guineização” de todo o Ultramar e da guerra, foi acolhido como uma bíblia salvadora por quem queria iludir-se.
A partir do momento em que o trunfo passou a ser “capitães”, a esquerda, a oposição ou o que fosse, foi rápida ou mais hábil a ir a jogo com eles.
No fim das contas
Marcelo Rebelo de Sousa, neste 47º aniversário do 25 de Abril, tentou pôr-se na pele das várias tribos ideológicas que, legitimamente, sempre disputaram o sentido da História, mas que agora parecem fazê-lo em modo de sectária guerra ideológica e sem um mínimo de conhecimento, de preocupação factual, de contextualização, de consciência crítica, de rigor.
A História tem sempre um “outro lado” e haverá sempre versões concorrentes. Mas se todos os regimes, autoritários ou democráticos, escolhem, de algum modo, a sua, convém que a deste deixe de ser a amálgama ideológica confusa, a delapidação e caricatura ignorantes e maniqueístas do passado, a versão sectária que impossibilita um futuro onde possamos todos caber, sem espírito – e risco – de guerra civil.