Estamos em plena Grande Transformação, a viver mais um Momento Polanyi (Polanyi, 1944), desta vez pela força conjugada e convergente de grandes transições cujos impactos afetam o sistema operativo da nossa vida coletiva que está estruturada em mercados e instituições, redes e plataformas, associações e comportamentos e que, nas suas múltiplas e complexas interfaces e interações, compõem a relação paradigmática entre o ator e o sistema. O equilíbrio destes impactos é muito precário, os seus efeitos muito assimétricos, e tudo leva a crer que estamos cada vez mais próximos de uma disrupção paradigmática que se insinua e revela de muitas maneiras. Lembremos algumas dessas grandes transições e seus efeitos disruptivos e assimétricos.
Em primeiro lugar, as alterações climáticas e a transição energética e a mudança significativa na agroecologia alimentar e nos custos de contexto e de oportunidade das cadeias de abastecimento. Em segundo lugar, as novas pandemias, os seus custos económicos e os efeitos de contaminação e contágio sobre a saúde pública. Em terceiro lugar, as rivalidades e tensões geopolíticas e os custos comerciais, económicos e humanos das guerras diretas e entre proxies, como agora se comprova facilmente. Em quarto lugar, o regresso à energia nuclear civil, desta vez à energia de fusão para abreviar a transição energética, o que é fonte de controvérsia. Em quinto lugar, as tecnologias de sequestro e captura de carbono, bem como do hidrogénio verde, que também são motivo de alguma controvérsia. Em sexto lugar, os nano-materiais, a biologia sintética e a engenharia genética que são, igualmente, motivo de controvérsia. Em sétimo lugar, a automação, a robótica e a inteligência artificial com todos os seus desenvolvimentos, cujos impactos sobre os mercados de trabalho já se fazem sentir. Finalmente, sobretudo no espaço europeu, a combinação do declínio demográfico e dos fluxos migratórios em ambos os sentidos, geram muito ruído de fundo nas sociedades democráticas.
Em conjunto, estas e outras transições e transformações geram uma alteração substancial das vantagens comparativas e competitivas entre economias, uma vez que assentam em diferentes estruturas de custos de contexto, cobertura de riscos, transação e oportunidade económica. Na verdade, as grandes transições e os seus impactos assimétricos anunciam uma policrise complexa e abrangente. Que não é somente uma policrise anunciada, mas, também, uma policrise já materializada em inúmeras e graves ocorrências. Por isso, quando comparamos a retórica política convencional com esta policrise sinalizada e materializada não podemos deixar de ficar preocupados com as disfuncionalidades da função e atividade políticas perante estas ameaças tão abrangentes e severas.
Nesta sequência, e no plano material da socio-economia, estas grandes transições e transformações provocam inúmeras fricções de ajustamento e adaptação e as suas consequências já estão à vista de todos. O caso português é bem ilustrativo. As crises de dívida pública e privada põem em causa o Estado social e agravam as desigualdades de riqueza e rendimento. O declínio demográfico, associado à emigração da população jovem, desequilibra o mercado de trabalho e faz aumentar os fluxos migratórios. Devido ao fraco crescimento económico e baixa produtividade os salários médios estão cada vez mais próximos do salário mínimo e fazem emagrecer a classe média. A pequena dimensão do mercado interno e do mercado de capitais faz depender a reestruturação empresarial de muitas opções do capital estrangeiro. Os efeitos positivos da turistificação da economia portuguesa disfarçam mal estas dificuldades estruturais. Em todo este contexto, a emergência do paradigma pós-estruturalista significa que não estão reunidas as condições necessárias e suficientes para projetar no tempo da programação e do planeamento a agenda das reformas estruturais que o país precisa. Se quisermos, nas primeiras três décadas deste século a sociedade portuguesa já habita no paradigma pós-estruturalista, pois tudo nela é restrição conjuntural, urgência e emergência. Não admira, portanto, que cresça o descontentamento popular, a criação de movimentos e partidos populistas, a deceção com a política e, no final, tudo parece resumir-se a um jogo de razões e justificações de oportunidade e circunstância.
Aqui chegados, qual é, então, a velocidade que cada sociedade deve adotar para operar, com um mínimo de danos colaterais, estas grandes transições e transformações, ou, como diria o filósofo Paul Virilio, para encontrar os pontos de equilíbrio entre velocidade, tecnologia e política. É aqui neste triângulo que emerge o paradigma pós-estruturalista que, num plano mais concetual, poderíamos enunciar da seguinte forma: devido ao avanço das nanotecnologias caminhamos em direção ao infinitamente pequeno individual, ao universo das nanocronologias, dos laços fracos e dos átomos sociais, ou seja, estamos na iminência de uma pulverização e atomização da sociedade, de um individualismo metodológico radical, de uma disrupção grave entre o ator e o sistema e face a uma colisão séria entre os mercados e as instituições, as redes, as plataformas e os comportamentos. Digamos que os indivíduos, quais átomos sociais, estariam, doravante, munidos de armamento nano e micro tecnológico suficiente para desenvolverem as guerras do amanhã do pós-estruturalismo.
Ora, no continente europeu, só a União Europeia pode dar uma resposta satisfatória a estas inquietações, pois só ela, em princípio, tem a escala, os meios e os recursos para formar uma verdadeira comunidade de risco e mutualizar as suas consequências mais gravosas, como, aliás, se comprovou com a abordagem feita à covid-19. No atual contexto europeu, estamos, porém, perante uma dúvida metódica, isto é, temos dúvidas fundadas de que a resposta política da União Europeia esteja à altura destas grandes transições e dos seus efeitos assimétricos, seja na política interna ou na política externa. Digamos que o paradoxo europeu está em plena laboração e favorece a eclosão desta tendência inorgânica do pós-estruturalismo. Num plano mais analítico, está em causa a verosimilhança política do triângulo de soft policy do projeto europeu, a polity, a policy e a politics europeia. A polity é a marca jurídico-política e institucional do projeto europeu e do seu processo de tomada de decisão, a policy é a marca económica e financeira do projeto europeu e do seu envelope orçamental traduzida nas suas diversas políticas comunitárias, a politics é a marca regulatória e comportamental da União nas várias dimensões da coesão social, ambiental e territorial. Nesta matéria, as disfuncionalidades do soft power europeu são hoje evidentes e acabam por acentuar a desordem estrutural das grandes transições, como agora se comprova facilmente no que diz respeito, por exemplo, à influência política das organizações multilaterais como a ONU e a União Europeia.
Nota Final
Estamos no outono de 2024, num momento de viragem decisivo nas relações internacionais, um pouco antes das eleições americanas. As democracias liberais e as organizações multilaterais do pós-2ª guerra estão a ser desafiadas pelos regimes duros e os governos autocráticos e ainda não fomos capazes de definir, no novo contexto, onde estão as fronteiras e os limites dos bens comuns democráticos que são a razão de ser da nossa vida coletiva em liberdade. No atual contexto, tudo leva a crer que as grandes transições não terão uma resposta à altura nas grandes reformas estruturais da ONU e da União Europeia. A polity, a policy e a politics europeias continuarão a oscilar ao sabor das relações de força e das situações de crise mais gravosas. Manifestamente, não chega. Voltaremos ao assunto no segundo artigo.