Conhecemos há muito o bloqueio estrutural da União Europeia. Ela troca a regra da política pela política da regra e confia num estado regulatório de baixa intensidade orçamental e elevada normatividade institucional assente em muitas entidades não-eletivas de natureza intergovernamental. Também já sabemos que a União Europeia só progride se for fortemente pressionada do exterior. Por isso, perante a pandemia do covid19 e a gravidade das ocorrências nesta altura, o momento é chegado de a União Europeia fazer prova de vida mais uma vez, sob pena de colapsar perante a indiferença absoluta dos cidadãos europeus. Acresce que já existem várias propostas para completar a união económica e monetária (UEM), logo, esta é a altura certa para a União Europeia retomar o curso da sua história do futuro.

No plano teórico-metodológico, o quadro concetual de uma UEM mais completa e de inspiração neokeynesiana poderia ser descrito esquematicamente do seguinte modo: monetização (BCE) dos défices públicos e compra de dívida (1), mais recursos próprios orçamentais (2), maior capitalização por via do BEI e outros Fundos financeiros (3), mais estabilização e mutualização das dívidas públicas nacionais e europeias (4), mais e melhor supervisão por via do BCE e do Tesouro europeu (5), mais e melhor regulação da união bancária e mercado de capitais (6), mais e melhor regulação do mercado único e da extraterritorialidade fiscal e financeira (7).

Nenhum dos conceitos aqui referidos tem, na atual UEM, uma plena aplicação. A monetização dos défices públicos está proibida pelos tratados embora se faça indiretamente no mercado secundário de obrigações com a política de compras do BCE. A tributação especificamente europeia, para alargar a base dos recursos próprios da União, arrasta-se penosamente há muitos anos sem quaisquer efeitos práticos. A capitalização (e vinculação normativa) das reformas estruturais marca passo. A mutualização das dívidas soberanas e da dívida europeia aguarda melhores dias embora o papel do mecanismo de estabilidade europeia (MEE) seja bastante relevante. A supervisão da união bancária e do mercado único de capitais tem ainda um longo caminho pela frente apesar dos progressos parciais já conseguidos na união bancária. Finalmente, a regulação do mercado único, em especial, o mercado único digital, e o controlo da extraterritorialidade (evasão fiscal) das grandes sociedades multinacionais é uma tarefa de grande alcance político que tarda em ser efetiva.

Neste contexto, a nossa dúvida fundamental pode ser expressa desta forma: quanto mais normalizamos e harmonizamos normas, regras e procedimentos em áreas onde a política doméstica tem alguma margem de discricionariedade, maiores são as nossas suspeitas de que está efetivamente assegurada a ligação com os fundos estruturais europeus que garantem a nossa estabilidade e a nossa convergência económica e social. Esta é a base da teoria da condicionalidade europeia e, também, a dúvida metódica dos chamados países amigos da coesão.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Assim sendo, esta dúvida metódica prejudica bastante a consistência do processo de tomada de decisão das instituições europeias e está na origem não apenas da atual arritmia dos instrumentos de política económica da UEM como de uma baixa efetividade dos seus processos e mecanismos de convergência económica e social. O facto de a consistência e sustentabilidade dos mecanismos de propagação da UEM não estarem garantidas recomenda que não confundamos, em matéria de convergência real, uma boa conjuntura económica com um bom crescimento potencial.

Recordemos, a propósito, o contexto histórico que foi proposto pela Comissão Europeia para completar a UEM e que, no essencial, continua válido hoje. O roteiro proposto a partir da visão exposta no Relatório dos Cinco Presidentes de junho de 2015 e nos documentos de reflexão sobre o Aprofundamento da UEM da primavera de 2017, inclui medidas concretas a tomar até 2025. No âmbito deste pacote são igualmente apresentadas diversas iniciativas.

Em traços gerais, talvez se possa dizer que está em causa a passagem progressiva de uma política intergovernamental, assente em entidades não-eletivas constituídas fora dos tratados, para uma política de inspiração mais federal e neokeynesiana em que a política monetária e a política orçamental, em sentido largo, são as duas faces da mesma moeda. Entre 2015 e 2020 a Europa atravessou uma fase de recuperação e crescimento económico em quase todos os Estados membros, mas perdeu o impulso para fazer a reforma da UEM. E este é o drama da União. Quando recupera não é o momento, quando é o momento não tem vontade política bastante. A pandemia do coronavírus, as guerras, a inflação e a tensão geopolítica acumulada desde 2020 não deixam espaço livre para cumprir o roteiro traçado até 2025, não obstante este ser um momento excecional no curso da história europeia. Numa síntese muito breve, o roteiro sugere-nos as seguintes linhas de orientação:

  • União bancária e mercado de capitais: aqui a orientação é reduzir os riscos próprios (o risco moral) para partilhar (mutualizar) os riscos comuns,
  • União económica e orçamental: aqui a orientação é criar mais regras e condicionalidade para promover mais capitalização das reformas estruturais e mais convergência económica e social,
  • União financeira: aqui a orientação é mais e melhor estabilização financeira (juros) e orçamental (choques assimétricos) via um tesouro e/ou um fundo monetário europeus,
  • União política: aqui a orientação é menos autoridades não eletivas constituídas fora dos tratados, maior integração jurídica dessas entidades no direito europeu e maior responsabilidade democrática perante as instituições europeias.

Dito isto, duas referências são merecedoras de um registo especial em matéria de política económica da zona euro. A primeira referência diz respeito à criação de um Fundo Monetário Europeu (FME), baseado no quadro jurídico da UE e assente na estrutura bem estabelecida do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE). Nos últimos anos, o MEE tem desempenhado um papel determinante na salvaguarda da estabilidade da área do euro, ajudando os Estados-Membros a recuperarem ou manterem o acesso aos mercados de obrigações soberanas. O FME teria por base a arquitetura do MEE, preservando o essencial das suas estruturas financeiras e institucionais, nomeadamente no que diz respeito ao papel desempenhado pelos parlamentos nacionais. Assim, continuaria a assistir os Estados-Membros da área do euro em situação financeira difícil. Além disso, o FME proporcionaria o mecanismo comum de apoio ao Fundo Único de Resolução e atuaria como mutuante de último recurso, com vista a facilitar a resolução ordenada de bancos em dificuldades. Ao longo do tempo, o FME poderia igualmente desenvolver novos instrumentos financeiros, por exemplo para apoiar uma eventual função de estabilização ou resseguro.

A segunda referência diz respeito a uma política económica mais assertiva de natureza claramente neokeynesiana no horizonte do próximo quadro financeiro plurianual (QFP) até 2030. Esse quadro integrado de política económica neokeynesiana seria composto pelo seguinte dispositivo instrumental:

  • A Comissão Europeia proporia um aumento do orçamento anual até atingir um défice máximo de 3% a ser financiado pela emissão de dívida especificamente europeia,
  • O Mecanismo de Estabilidade Europeia, como vimos, evoluiria para um instrumento mais poderoso de apoio aos choques assimétricos no interior da União e com funções de estabilização mais alargadas,
  • O BCE assumiria mais claramente as funções da política monetária no quadro da UEM, em especial, o redesconto do empréstimo bancário e as operações de open market (compra de ativos),
  • O BEI aumentaria os seus capitais próprios e, também, o capital obrigacionista para fazer crescer o seu potencial de crédito e financiamento,
  • Uma Agência Europeia de Dívida Conjunta ou um Tesouro Europeu veria a luz do dia tendo em vista as emissões de dívida conjunta; depois do pretexto coronavírus” teríamos agora o pretexto da reconstrução da Ucrânia, a ajuda humanitária e ao desenvolvimento e outros bens públicos globais onde se conta, doravante, a segurança e a defesa.

Como sabemos, os tratados europeus atuais proíbem o financiamento direto das autoridades públicas nacionais pelo BCE. Entretanto, a banca portuguesa recorre aos empréstimos do BCE, às taxas de juro de referência em vigor e aplica uma parte importante desses recursos em obrigações portuguesas a um preço relativamente baixo o que lhes proporciona uma taxa de juro muito satisfatória. Isto significa uma certa japonização ou italianização da dívida portuguesa, uma vez que o grau de exposição ao incumprimento reside, hoje, muito mais na banca portuguesa do que na banca estrangeira. Ou, dito de outro modo, a sorte da banca está intimamente ligada à sorte da dívida soberana portuguesa, donde se pode inferir a importância crucial da União Bancária e do Mercado de Capitais nesta matéria.

Notas Finais

Aqui chegados, em matéria prudencial talvez possamos afirmar, a propósito da dialética própria da política europeia, o que se segue:

  • Em primeiro lugar, é preciso assegurar que as normas, os procedimentos e as autoridades não-eletivas não se substituam ao processo de tomada de decisão das instituições e criem, por esse facto, as condições para alguma instabilidade política,
  • Em segundo lugar, é preciso assegurar que a política das regras e a sua condicionalidade vinculativa não determinem o essencial do acesso aos fundos estruturais; a relação de causa e efeito entre a política conjuntural e as reformas estruturais deve ser conduzida com grande flexibilidade e inteligência políticas, em especial no atual contexto,
  • Em terceiro lugar, é preciso assegurar que os choques assimétricos não continuam a fazer ciclicamente as suas vítimas, malbaratando todo o esforço realizado para fazer as reformas estruturais; é preciso evitar que se repita o que aconteceu após 2011 sob pena de criarmos uma grande instabilidade política,
  • Finalmente, é preciso garantir que somos capazes de reduzir o risco moral e criar as condições para partilhar e mutualizar os riscos sistémicos transfronteiriços e os efeitos malignos da extraterritorialidade; estes bens comuns europeus serão um suplemento de confiança política indispensável ao projeto europeu.

Nos últimos anos, o Banco Central Europeu (compra de ativos), a Comissão Europeia (suspensão das regras do pacto de estabilidade) e o MEE (financiamento extraordinário) já deram sinais inequívocos de que estão atentos a conjunturas excecionais. Mas a dúvida metódica permanece. O próximo alargamento ao leste europeu, nas condições em que irá ocorrer, provocará uma distorção profunda na atual estrutura das políticas públicas europeias. O enorme esforço financeiro dessa grande operação geoeconómica e geopolítica que é o alargamento ao leste, e à Ucrânia em primeira análise, irá gerar um endividamento nacional extraordinário que se tornará irremediavelmente recessivo um dia mais tarde. Este é, pois, o momento politicamente mais avisado para substituir as dividas nacionais por dívida pública europeia, mesmo que isso seja feito a troco de uma promessa de União Europeia mais federal e neokeynesiana e com novas regras de natureza jurídico-institucional no âmbito de uma revisão dos tratados europeus. Infelizmente, não creio que a tríade europeia – Conselho Europeu, Parlamento Europeu e Comissão – e os seus líderes atuais tenham poder político e energia carismática suficientes para acrescentar valor político relevante ao projeto europeu nesta altura. Oxalá eu esteja redondamente enganado.