No horizonte 2030 um dos maiores desafios do projeto político europeu diz respeito ao impacto das grandes transições e ao modo como a União Europeia, nesse contexto, irá abordar os temas da multiescalaridade e da governança multiníveis. Senão vejamos.

  • No plano das alterações climáticas e da saúde pública: estão em causa os bens comuns globais não apenas no quadro europeu, mas, também, no quadro da comunidade internacional; de resto, os efeitos globais da pandemia, das alterações climáticas e das guerras na fronteira europeia poderão ameaçar algumas economias domésticas e marcarão profundamente toda a década, com muitos acidentes imprevistos e choques assimétricos;
  • No plano do mercado único europeu: estão em causa os fluxos globais do comércio internacional, os fluxos migratórios, os impactos da revolução digital e artificial nos mercados de trabalho e, em consequência, o desenho das futuras das cadeias de valor europeias onde se conta a chamada reindustrialização do mercado único europeu;
  • No plano do orçamento e da moeda única europeia: assistiremos, talvez, à fase seguinte da união política, por via de um mix de política orçamental e monetária, de natureza mais claramente neokeynesiana como se comprova com a criação do PRR; de facto, não se trata apenas de manter a coesão interna da União Europeia, e aceitar o 2º alargamento a leste, mas, também, de reforçar os programas de cooperação e ajuda internacionais sob pena de assistirmos ao desmoronamento de uma parte substancial da comunidade internacional;
  • No plano das migrações: a União acaba de aprovar o Pacto das Migrações, mas, não obstante, assistiremos, muito provavelmente, a um reforço dos fluxos erráticos de população, de asilados políticos de estados autocráticos e de estados falhados, refugiados ambientais, refugiados da fome e da doença, refugiados por motivos étnicos e religiosos e de género, onde tudo se confunde com tudo, com consequências inelutáveis sobre a natureza e amplitude dos movimentos sociais e da cidadania no quadro da política doméstica dos estados europeus recetores;
  • No plano da segurança e da defesa europeias: com duas guerras na fronteira europeia sem data para terminar, assistiremos, muito provavelmente, a uma revisão multipolar das relações internacionais, desde logo, as relações de vizinhança com a Federação Russa, o Grande Médio Oriente e o Norte de Africa, razão pela qual daremos os passos necessários em direção a uma organização especificamente europeia de defesa e segurança e a um Conselho de Segurança Europeu;
  • No plano dos futuros alargamentos ao leste europeu: estão em causa os alargamentos aos países dos Balcãs ocidentais, à Ucrânia, Moldova e Geórgia e à Turquia que é país candidato desde 1999; as negociações de adesão serão, seguramente, politicamente muito sensíveis e esse facto poderá ser utilizado para retardar ainda mais as negociações; não restam dúvidas, será mais uma zona de atrito na fronteira mais próxima da União Europeia.

Estas grandes transições não seguirão, muito provavelmente, um guião bem estabelecido e este facto relevante mina a segurança da política das administrações e a estabilidade institucional dos incumbentes respetivos. Tudo parece estar em causa e nunca como agora as reformas multiníveis da governança europeia e do Estado-administração foram tão necessárias para o bem-estar dos cidadãos e a estabilidade dos valores europeus.

Assim, as mudanças funcionais, políticas e institucionais desta década acontecerão, tudo leva a crer, em quatro níveis de governo e administração. A reforma político-institucional da União Europeia, mais federal, comunitária ou intergovernamental. A reforma jurídico-institucional dos Estados membros com alterações no funcionamento e relação entre os diferentes níveis de administração pública. A reforma político-administrativa nos níveis subnacionais de administração, com mais regionalização administrativa e descentralização para as autarquias. Finalmente, as reformas na democracia participativa e colaborativa com as inovações introduzidas pelas plataformas digitais colaborativas no plano da cidadania ativa.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No que diz respeito à estratégia de governança europeia, é muito provável que sigamos um hibridismo reformista de geometria variável consoante o número de países relutantes, isto é, um complexo variável de áreas ou atribuições triangulares, mais federais, mais comunitárias e/ou mais intergovernamentais. Nos Estados membros, a subsidiariedade multiníveis será traduzida numa redistribuição variável de atribuições e competências pelos níveis subnacionais de governo e administração de acordo com cada idiossincrasia política nacional. Na democracia colaborativa local e regional, serão adotados muitos formatos e soluções a partir de iniciativas de coprodução e cogestão com os cidadãos por via de plataformas digitais. Em todos os casos, o hibridismo das reformas passará pela transformação digital e a inteligência artificial, isto é, pela governação algorítmica no quadro da chamada sociedade algorítmica europeia.

No plano jurídico-político da polity europeia os impactos das grandes transições terão tradução num leque de competências que poderão ser alinhadas da seguinte forma: uma simples coordenação aberta entre governos nacionais, nuns casos, uma cooperação estruturada e reforçada em outros casos, conforme aos tratados, ou, ainda, uma nova competência comunitária de acordo com um entendimento mais compreensivo do problema em questão. No mesmo sentido, e no plano jurídico-financeiro da policy europeia, tudo dependerá muito da amplitude dos impactos e da sua intensidade temporal. Assim, poderemos ter uma contribuição extraordinária do orçamento comunitário, um mecanismo excecional de financiamento com base num financiamento extraorçamental, um empréstimo do BEI, a criação de um fundo europeu permanente, todas estas soluções em conjunto e partilhadas com os recursos de origem nacional. Em particular, os impactos das alterações climáticas, o pacto das migrações e a economia da segurança e defesa, mas, também, o próximo alargamento, serão, seguramente, os maiores desafios à polity e policy europeias daqui até 2030.

Aqui chegados, um dos maiores obstáculos a uma eficiente governança multiníveis reside no cerne mesmo do conceito de multiescalaridade e tem a ver com os pesados custos de contexto gerados pelos efeitos assimétricos das grandes transições e, bem assim, pela falta provável de interoperabilidade entre os vários níveis de governo e administração. Na verdade, esses novos custos de contexto geram muitas externalidades negativas, muitos acidentes imprevistos, um risco moral elevado, muitos caçadores furtivos, free raiders, coberturas de risco muito altas e, no final, uma sequência de custos de oportunidade significativos. Dito isto, queremos acreditar que os diversos planos de ação na União Europeia irão traduzir-se numa dinâmica inovadora do princípio de subsidiariedade, ascendente e descendente e, neste contexto, que um Estado-administração omnipresente, burocrático e sempre a exigir conformidade, já não faça muito sentido, pelo que, progressivamente, a decisão administrativa unilateral, em algumas áreas, será substituída por uma deliberação participativa e colaborativa entre administração pública e comunidades inteligentes representativas.

Uma das áreas desta dinâmica inovadora da administração multiníveis diz respeito à cooperação territorial descentralizada, às euro-regiões, redes de cidades e plataformas colaborativas de cidadãos. Esta é, também, a razão pela qual nós dizemos que falta uma doutrina regionalista à União Europeia e que é um crime de lesa-Europa não aproveitar o potencial de crescimento distribuído que reside na Europa das Regiões, nas redes de cidades e nos agrupamentos europeus de cooperação territorial. Em aplicação do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) este é também o momento para elaborar um pouco mais fora da caixa no que diz respeito à política de coesão mais convencional que, em minha opinião, continua a girar muito em redor do Estado vertical, suas clientelas e destinatários habituais. Uma política de cooperação territorial descentralizada poderia surgir como um espaço de concertação de iniciativas e projetos, associada a fórmulas organizativas mais inovadoras e libertas da tutela administrativa mais convencional. No resto, a cooperação descentralizada poderia funcionar como instrumento estabilizador de eventuais conflitos político-sociais, onde se contam, também, alguns regionalismos emergentes nas suas formas mais radicais.

Nota Final

Um último aspeto da multiescalaridade e governança multiníveis diz respeito às boas práticas de cidadania responsável no quadro de uma sociedade mais colaborativa. Todos nós aguardamos que as grandes transições desta década nos tragam uma reorganização da sociedade civil em linha com a arte da associação de interesses, sobretudo, dos interesses difusos dos cidadãos. Para este desiderato contribuirá em muito a nova cultura administrativa que é praticada por redes descentralizadas e distribuídas em modo de coprodução e cogestão, enquanto as redes sociais, as comunidades inteligentes e as plataformas colaborativas alargam a base representativa do que pode ser considerado o interesse público. Assim, na sociedade em rede, as novas associações de interesses irão reclamar, naturalmente, uma administração mais aberta, ágil e de geometria variável no quadro de uma renovada territorialidade europeia.  Esta territorialidade europeia poderia assumir a forma de um novo contrato social ligando macrorregiões europeias, euro-regiões, redes de cidades, de universidades, de associações empresariais, de centros de investigação, de instituições sociais e culturais de todo o tipo, tendo em vista criar capital social e simbólico especificamente europeus e, assim, dando corpo, substância e significado ao conceito de bens comuns europeus, o conceito do nosso destino como comunidade.