A compaixão tem boa saída. Tida como o antídoto perfeito para o egoísmo ensimesmado, seria ela a fazer que cada qual saísse de si e descobrisse a plena alteridade do outro: o outro que sofre. Perante o espectáculo do sofrimento, o eu é invadido e ocupado passivamente pelo outro. Paradoxalmente, seria nessa despossessão de si pelo outro concreto que o sujeito se descobriria como um entre outros, igual entre iguais. Trata-se de um modo de compreender os dois polos, o eu e o outro, que levanta alguns problemas. Quem se compadece é passivo relativamente ao facto bruto, leia-se: não enquadrado por valores, do sofrimento; significa isso que abdica de compreender o sofrimento enquanto tal, porquanto prescinde de qualquer outro critério para lidar com o sofrimento, o que pressupõe, claro está, a opção prévia e tácita de deixar vigorar a compaixão como critério único. Nesse sentido, enquanto facto, todos os sofrimentos são iguais; uma vez que não vê no outro senão o seu sofrimento, a compaixão transforma-se no seu oposto: uma forma de desumanidade. Por várias razões. Uma vez que o outro é descoberto única e exclusivamente no seu sofrimento, o sofrimento da vítima vale tanto como o sofrimento que provoca a justa punição infligida ao seu carrasco. É desumana também porque, ao fixar-se no momento do sofrimento, anula toda a história de vida de outrem e as escolhas por ele feitas, ou seja, degrada-o a mero caso de um sofrimento autonomizado, universal, retirando-lhe com uma mão precisamente o que havia dado com a outra: o seu reconhecimento como sujeito. Mas não é só o objecto da compaixão que é desumanizado, o próprio sujeito da compaixão também o é, e pelas mesmas razões. Passivo perante o sofrimento, abstendo-se de julgar, abre mão da sua qualidade de sujeito activo e torna-se mera função do sofrimento que cada momento pode arrastar consigo, dissolve-se na sucessão de instantes, reduz-se a um espelho onde se virão reflectir à vez as imagens do sofrimento na sua concretude.
A insustentabilidade de um tal entendimento da compaixão mostra-se, ainda assim, aos seus próprios proponentes, dado que invocam a compaixão como dever. Por outras palavras, a necessidade de subsumirem os factos no valor geral da compaixão retira-lhe a autenticidade e o carácter originário que lhe era atribuída. E anula no medium da linguagem articulada a mudez de sua pretensa plenitude, contrabandeada pela decisão prévia de elevar a compaixão a princípio axiomático na relação com outrem. Vêm-se assim metidos numa camisa-de-onze-varas. Por um lado, querem manter a referência à compaixão como facto, por outro, pretendem que seja um valor (dever). A solução é sentir para não avaliar e avaliar para não sentir, consoante os casos. Na bifurcação onde os caminhos se apartam, revela-se, contudo, a escolha não dita de uma tal solução.
Passado mais de um mês sobre os acontecimentos de 7 de Outubro de 2023, é possível fazer um balanço da compaixão na consciência do mundo que as Nações Unidas e do seu Secretário-Geral, António Guterres, pretendem ser – sem analisar a fraseologia tendenciosa de todos os documentos das Nações Unidas, ou os seus eloquentes silêncios, por exemplo quanto ao rage day proclamado pelo Hamas. Em todas as suas declarações, conforme publicadas no sítio da O.N.U, há algumas constantes, que são também as constantes do modo de ver da esquerda progressista.
As imagens do sofrimento que aduz são sempre de um só lado: o palestiniano. Assim, no primeiro comunicado, de 9 de Outubro, no qual o Secretário-Geral, António Guterres, ainda salva as aparências, refere-se a 800 israelitas mortos e à tomada de 100 ou mais reféns, civis e militares, incluindo mulheres, crianças e idosos, mas só os mortos palestinianos é que merecem a especificação humanitária: mulheres e crianças. Estava dado o mote. Daí para a frente, mulheres, crianças e idosos, por vezes mulheres grávidas, mães e doentes, as imagens concretas do outro que sofre, só existem num dos lados, do outro, há apenas civis, uma abstracção que se define em relação a militar, e que deixa nos espíritos como último conteúdo o elemento militar israelita. A excepção, aparente, explica-se pelo contexto, dilata o rol de vitimização feminina, não especificamente israelita. O isolamento de Israel prossegue com o acrescento à lista de «outros concretos», jornalistas ou trabalhadores de hospitais, escolas ou do sector humanitário. O último passo, perverso, consiste em desequilibrar a balança a partir do próprio interior israelita. Assim, na conferência de imprensa de 6 de Novembro de 2023, apresentam-se dois casos humanos; uma jovem mulher palestiniana, estudante, Mai, que padece de distrofia muscular; Mai perseverou nos seus sonhos, tendo-se tornado programadora informática, trabalha para Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente, um exemplo inspirador, afirma o Secretário-Geral. Do lado israelita, uma mãe, sem nome, cujo filho Hersh foi raptado, declara: «Quando nos escandalizamos apenas quando são mortos bebés de um só lado, é porque a nossa bússola moral está estragada e a nossa humanidade está quebrada. Na competição da dor, nunca há um vencedor». Até uma voz israelita põe em evidência os bebés do outro lado.
A duplicidade das Nações Unidas é bem conhecida e já produziu efeitos desastrosos; basta lembrar a Resolução n.º 3379, adoptada em 10 Novembro de 1975, que equiparou o sionismo ao racismo. O que hoje se passa, contudo, é bem diferente. O massacre perpetrado pelo Hamas em 7 de Outubro de 2023 não foi um ataque igual aos outros, mas apenas numa escala maior, se bem que isto também seja novo. O que produziu um choque generalizado, e também nas boas consciências de que as Nações Unidas são o expoente máximo, foi o carácter inaudito do exibicionismo da crueldade desenfreada, mas deliberada, metódica e fria. E também o exibicionismo, não menos chocante, do júbilo que se manifestou no regresso dos terroristas a casa e às suas famílias. As imagens que os próprios terroristas captaram e difundiram obrigariam a esquerda progressista a compadecer-se de Israel e a avaliar o Hamas – uma situação insustentável, na medida em que invalidava a sua pré-compreensão do árabe islamita oprimido e reactivo, incapaz do mal, e de um mal tão longamente planeado (dois anos segundo se alega) e de um mal que entrava pelos olhos adentro. Por outras palavras, não bastava sentir, não bastava a compaixão por um povo oprimido, mas bom, impunha-se julgar aqueles actos. Era necessária, por isso, uma reavaliação radical de todos os intervenientes em jogo; precisamente para a evitar, tudo se faria; nenhum preço seria excessivo para garantir uma cegueira voluntária. O próprio desespero ditou a resposta: inflexibilidade total do mecanismo de defesa. O decreto inexorável foi: nenhuma compaixão por Israel, nenhuma avaliação do Hamas; mas formulado numa forma aceitável para as boas consciências, não dissonante, que mantivesse a continuidade com o passado: compaixão pelo povo palestiniano, acusação de Israel. Por essa razão tombou um manto de silêncio sobre as imagens dos ataques, em parte involuntário, como já é hábito, mas também voluntário – era preciso não ver as imagens do sofrimento dos israelitas. A compaixão sem palavras mostrou a sua natureza: é a palavra da condenação.