Suponho que a maioria dos leitores já terá ouvido falar dos bronzes do Benim. Para quem não está minimamente a par do que se trata refira-se que os admiráveis e admirados bronzes — milhares de figuras e painéis em bronze e latão — foram saqueados por tropas britânicas no final do século XIX e, depois, vendidos a museus europeus e norte-americanos. A título de exemplo, diga-se que há mais de mil peças desse antigo reino africano na posse de museus alemães.
Sempre atento às questões coloniais e descoloniais, o jornal Público deu e voltou a dar entusiásticas notícias sobre as anunciadas devoluções dos bronzes do antigo reino de Benim — que corresponde à parte sul da actual Nigéria — e publicou jubilosos artigos de opinião sobre as que já se concretizaram. De facto, em Dezembro passado, o Estado alemão devolveu mais de uma vintena dos famosos bronzes à Nigéria. Duas ministras alemãs foram em pessoa entregá-los ao governo nigeriano. De acordo com o plano os referidos bronzes iriam ficar expostos em Benin City, no sudoeste do país, num pavilhão especificamente construído para o efeito graças ao cofinanciamento de 4 milhões de euros do Estado germânico e que ficaria adjacente a um projectado Museu de Arte Africana Ocidental.
Esse era o plano por altura da entrega dos bronzes, mas as coisas acabaram por levar uma volta e por não se passar exactamente assim, ainda que, por razões que me escapam, o atentíssimo Público se tenha esquecido de nos pôr ao corrente dos mais recentes acontecimentos. Felizmente podemos segui-los no New York Times.
O que se passa é que o presidente cessante da Nigéria, Muhammadu Buhari, recebeu os bronzes do governo alemão e em vez de os canalizar para o tal pavilhão do futuro museu, como estava previsto, decidiu entregá-los a um descendente do monarca do antigo reino do Benim. Ou seja, transferiu para esse descendente a propriedade dos artefactos recebidos da Alemanha e decretou que, daí em diante, eles ficariam onde esse novo depositário e dono considerasse adequado e seguro. Por outras palavras, não há garantia de que estes tesouros da arte mundial venham a ser exibidos ao público nem que, no limite, não possam, adiante, ser vendidos e, num efeito de bumerangue, reentrar no circuíto comercial, acabando por ir parar às vitrines de um museu ocidental — porventura alemão.
Claro que temos na Europa gente, entre a qual me incluo, que defende que os africanos são soberanos e que os ocidentais não têm de se meter onde não são chamados. Terão feito bem em devolver coisas incontestavelmente pilhadas e ponto final parágrafo. O destino que agora lhes será dado em África não é da sua conta. Mas quem assim pensa talvez esteja em minoria. O facto de a propriedade daqueles bronzes ter passado para mãos privadas causou surpresa e implicou frustração e ansiedade nos países ocidentais que já devolveram peças ou que ainda se preparam para fazê-lo. Em Inglaterra a Universidade de Cambridge resolveu adiar uma cerimónia de restituição dos bronzes em sua posse. Na Alemanha vários parlamentares e jornalistas perguntam se, na ânsia de corresponder ao seu impulso politicamente correcto, o país não terá acabado por se precipitar desastradamente. Há a esperança de que Bola Tinubu, o novo presidente nigeriano, anule a decisão do seu antecessor, mas mesmo que isso aconteça será apenas o início de uma batalha jurídica que irá complicar muitíssimo aquilo que parecia simples e conforme com a justiça e o interesse de todos.
Por outro lado, na Nigéria a coisa tambem não é indiferente e há quem muito se irrite com esta ingerência e reprovação dos europeus. “Tratem dos vossos assuntos” — diz um dos descendentes do antigo rei do Benim — “que nós tratamos dos nossos”.
Em suma, as melhores intenções levam, por vezes, a resultados paradoxais. Estas devoluções, feitas, no fundo, para tranquilizar a consciência, tentando lavar crimes e emendar erros da era colonial, acabam por levantar ventos de colonialismo, de tutela paternal de brancos sobre negros e de evocações politicamento incorrectas, sobretudo porque, no calor do debate, há quem tenha vindo lembrar aspectos desagradáveis, ainda que verídicos, do antigo reino do Benim, como sejam o seu extenso envolvimento do tráfico transatlântico de escravos e a prática de sacrifícios humanos. Há, também, quem sugira uma suposta incapacidade nigeriana para guardar e preservar as riquesas postas à sua guarda, o que não pode deixar de irritar os próprios visados e outros africanos.
Um dos livro que li nos anos 90 e de que muito gostei, foi White Dreams, Black Africa. The Antislavery Expedition to the Niger, 1841-1842, escrito por Howard W. Temperley, um historiador britânico que procurou mostrar o fosso entre as realidades africanas e os projectos e fantasias dos britânicos de Oitocentos a respeito de África e dos seus habitantes. Esse livro veio-me à memória quando li o artigo do New York Times que aqui resumi e que dá conta do que se está a passar com as tão badaladas e aclamadas devoluções dos bronzes do Benim á Nigéria. Há, efectivamente, um abismo entre aquilo que os europeus projectam para África e o que os africanos decidem fazer. Esse abismo é muito antigo e persistente, isto é, tem acompanhado os sonhos dos primeiros projectistas utópicos do século XVIII em diante, e tem sido causa de muita frustração e ressentimento de parte a parte. Porque tudo isto é muito mais complexo do que um simples toma lá dá cá abençoado por tardios actos de contrição. Restituições a países que têm culturas, códigos de conduta e noções de propriedade e de direitos sobre coisas e pessoas diferentes dos nossos não são assunto de geometria euclidiana, mas de bom-senso. É bom que em Portugal, onde também se planeiam e preparam restituições de artefactos, se tenham estes factos em conta para se perceber o terreno que se pisa e para evitar confusões e desilusões.
Perceberá Portugal o terreno que pisa? Ainda que Pedro Adão e Silva, o ministro da Cultura, se recuse a pensar esta questão das restituições em termos gerais, abstratos, e queira discuti-la apenas em torno de casos concretos, tem, ainda assim, uma filosofia a esse respeito. Como disse há dias, numa entrevista à revista Visão, “se o país A devolver uma peça para o país B e depois o país B não estiver capacitado para conservar e restaurar essa peça, isso não beneficia ninguém”. É claro que o ministro tem razão, mas tem-na dentro da forma ocidental e museológica de ver as coisas. Tem de haver consciência plena de que essa forma não é universal e de que, se houver decisão por parte do Estado português de devolver uma determinada peça, por ela ter sido pilhada ou ilegalmente adquirida — únicos casos em que, a meu ver, deve ser encarada a devolução —, a partir daí caberá ao país receptor a decisão do que irá ser feito com ela, ainda que essa decisão vá contra a opinião de quem a entregou. A não ser assim, estaríamos, de facto, perante um caso de inaceitável tutela e neocolonialismo mental.