O carpinteiro deixou uma vez mais o violoncelo junto ao piano e desceu à oficina para terminar a sua obra – uma belíssima cadeira de cerejeira. Os seus dias eram, pela manhã, artesania em bordo ou cedro e, à tarde, árduo trabalho sobre cordas. Há já anos que estudava a figura da Sibila e, por extensão, a das musas gregas. Repetia os seus nomes com paixão, como se saboreasse rebuçados de menta: Calíope, Clio, Erato, Euterpe, Melpómene, Polímnia, Tália, Terpsícore e Urânia. Juntas justificavam o mistério da inspiração. Dormitavam entre as letras dos poucos mas valiosos livros e enciclopédias que o carpinteiro tinha na sua cabana de madeira, levantada com o esforço das suas mãos e o seu gosto por arquétipos. Nada havia em sua casa que não fosse uma jóia de cerâmica, freixo ou carvalho. Foi a dor que lhe causaram as mulheres reais que o levou a estudar figuras míticas. Na verdade, a sua paixão era o mundo feminino, por trás do qual se erguiam, como pilares de amor, a sua avó e a sua mãe. Costumava dizer que o amor é uma ferida que não se fecha nunca, uma descida à parte mais infernal do paraíso. Um tremor extático, um irreversível adeus.
Que a mãe de todas as musas fosse Mnemósine, a encarnação da memória, determinou, na medida em que a sua lhe ia falhando, que desejasse construir-lhe uma cadeira, invocá-la no seu jardim ralo sob a eterna ameixeira das suas compotas, e aguardar que ela viesse e o visse, pois não será ver uma das formas mais silenciosas de fazer amor?
Quando pronunciava o nome das mensageiras da Criação, era como se soubesse grego desde sempre. Saboreava as suas vogais enroladas e quentes, as suas sílabas cortantes e ritmadas da mesma forma que tocava o seu violoncelo com emoção contida. Era um ancião de coração jovem, que vivia no mundo de costas voltadas para tudo quanto é superficial. Na juventude, sofrera um ataque de ninfolepsia: uma jovem desconhecida despira-o – de longe, primeiro, com os olhos apenas – e depois, já nu e despojado, derrubara-o à beira de uma esquina de um riacho e a beleza mordera-lhe o pescoço com os seus dentes de prazer eterno. Um episódio que julgava esquecido até que, concluída a sua casa, tendo sido ferido vezes sem conta pelo génio feminino, quis perceber o porquê. Por que razão amava aquela dentada. Quis saber se aquela visão temporã tinha aparecido para não lhe repetir a vista, ou se por acaso antecipava, num futuro mais ou menos próximo, um regresso inesperado e revelador.
Platão atormentou-o com as suas ideias, a noite estrelada falou-lhe de Nut, a egípcia, cujo regaço recolhe os mortos. Numa manhã, chegou o sol de Apolo e um lampejo de felicidade conduziu-o à sua biblioteca para descobrir que todos os seus livros tratavam de mitos e lendas femininas. Ali estavam as vidas e as obras da curadora, da maga, da curandeira, da amante, da mensageira, da cantora, da assassina, da vidente, da cozinheira, da bordadeira, da bruxa, da equilibrista, da dançarina e, por fim, a um canto, Mnemósine, a memória. Tinha medo de levar os amigos à biblioteca para que não o tomassem por perturbado. Nos seus pensamentos, tinham mais importância as musas, as náiades, as nereidas, as hamadríades e as ondinas do que as mulheres reais. Nas noites de lua boa, deixava um prato com água para que o seu rosto o olhasse simultaneamente de cima e de baixo.
Um perfume a cedro velho e aparas de faia vindo da oficina chegava à sua cozinha, onde ardia a lenha para temperar os seus invernos. O carpinteiro envelhecia com dignidade, sabendo que o feminino, tal como a água, desce em benefício de todos, mas guarda, nos seus rios subterrâneos, o segredo da arte da fuga. Flui, a água, e ao mesmo tempo estagna, congela ou evapora. É Helena quem provoca a guerra e Maria quem engendra um Deus; é Laura quem acaricia a fronte do poeta e Isolda quem enlouquece um rei. «O amor é por certo uma ferida que não fecha nunca», pensava o carpinteiro, polindo a cadeira onde queria que se sentasse, durante a sua visita, Mnemósine, a mãe das musas.
Lera certo dia que a ninfolepsia era uma espécie de melancolia que nos incita a procurar as florestas, as heras, as nascentes, e que nos empurra até às árvores para nelas vermos as silenciosas irmãs que providenciam sombra e sustento. A sua casa fora feita, aliás, com as árvores que ele próprio tinha abatido e tratado; nunca a terminaria completamente, tal como nunca veria, em pessoa, as suas queridas criaturas, as musas. Cada vez que o naufrágio dos sentimentos o mergulhava na nostalgia, recorria à música, que tudo cura porque alisa em melodia tudo aquilo que o ruído enruga ou quebra, a música que tudo torna presente.
Pouco a pouco foi ficando com cada vez menos perguntas, aceitou que o desconhecido fosse, como a escuridão do céu nocturno, maior do que o luminoso conhecimento das estrelas. Uma tarde, depois de ter mudado de sítio a cadeira que tinha preparado para a mãe das musas, foi à sua biblioteca consultar A Arte da Memória, de Frances Yates, onde releu o excerto que narra a queda de um telhado durante um banquete e a reconstituição que o único sobrevivente fez do lugar que ocupava cada um dos convivas. Donde se infere que a memória é primeiro espaço e depois tempo.
A sineta da cabana tocou. O carpinteiro abriu. Era uma vizinha que lhe trazia, naquele seu sorriso desigual, um bolo de sementes de papoila e de trigo selvagem. Não se deu conta de que, por indicação sua, ela se tinha sentado na cadeira de cerejeira senão quando, ao terminar a sua chávena de chá, muito mais tarde, ela lhe terá dito: «A papoila e o trigo não apenas complementam o seu vermelho e verde, são também a dormideira e a espiga que surge do grão único e se desperta múltiplo. Lembrei-me de que te devia um dom e trouxe-to. Considera-o um detalhe significativo no magma amorfo do olvido».
O carpinteiro sorriu, a seguir chorou, depois suspirou e por fim conseguiu dar graças.
A memória chegou e partiu, na companhia das invisíveis Calíope, Clio, Erato, Euterpe, Melpómene, Polímnia, Tália, Terpsícore e Urânia, deixando na boca do carpinteiro um renovado sabor a relva acabada de cortar durante as primeiras chuvas de Outono: aquilo era então a beleza, um vago cortejo de carícias auditivas, em cujas ondas vemos e não vemos as nossas privações. Vivemos apenas uma vez, e não nos é consentido refazer – nem mudar nem melhorar – o que já fizemos.
Para nós que nos encontramos sob o pórtico deste instante, a três dias de um novo ano, cada momento é de uma perplexidade infinita. Eis o drama da finitude, de uma finitude que a condição vulnerável não faz mais do que exprimir com ainda mais força, mais intensidade. Talvez o amor não seja mais do que isso: a urgência de se devolver algo que se julgava perdido.
Feliz Ano Novo!