No dia 25 de abril de 2024 a democracia portuguesa comemorará meio século de existência. Nessa data é muito provável que o enquadramento global e europeu e algumas das suas linhas vermelhas estejam ao rubro, por exemplo, os impactos da crise climática, as ameaças virais e pandémicas, o perigo terrorista e o risco permanente de uma crise nuclear, as tensões geopolíticas com a China e a Rússia, o risco informático e a guerra cibernética, a ameaça populista e a regressão iliberal, a saúde da economia global e do multilateralismo, a falta de confiança no projeto europeu.
Para lá destas linhas vermelhas, e no plano especificamente europeu, existem alguns riscos mais próximos de nós e que mais diretamente nos podem afetar. Na margem sul do mediterrâneo os acontecimentos falam por si, estamos perante estados falhados, muito radicalizados e com fluxos de refugiados intensos. Não chegam boas notícias da diáspora portuguesa, basta pensar na Venezuela, África do Sul, Angola, Moçambique ou Brasil, para citar apenas os mais críticos. Mesmo no plano peninsular pode estalar uma crise política interna, por razões que se prendem com o regionalismo independentista e sua associação à crise da monarquia, a que acrescem os problemas relativos às centrais nucleares próximo das fronteiras e a gestão da água dos rios internacionais da península.
O risco mais sério, porém, é, mesmo, uma grave crise de confiança no seio da União Europeia. Qualquer fratura ou disfuncionamento na sua atividade pode ser uma péssima notícia para todos os europeus. A União Europeia tem de estar muito atenta aos efeitos assimétricos dos grandes riscos sobre a coesão territorial em sentido amplo, em especial, as desigualdades sociais e a polarização social, pois são elas que conduzem ao radicalismo, populismo e nacionalismo europeus e a uma grave crise de confiança. É neste contexto sobrecarregado que surgem as propostas relativas à revisão das regras de condicionalidade da governação económica da União e seu impacto sobre a política de coesão no próximo futuro.
O compromisso orçamental desta revisão é relativamente fácil de definir. De um lado, as consequências orçamentais da epidemia, inflação e despesas com a guerra/sanções colocam uma pressão adicional sobre o orçamento e obrigam a uma maior eficiência financeira e fiscal. De outro lado, para executar bem os grandes programas de investimento – PRR e PT 2030 – é necessária uma margem orçamental suficiente. Com base neste compromisso, o ajustamento orçamental deve ser gradual para não comprometer as metas de crescimento, em especial as metas ambientais e digitais das grandes transições desta década. Assim, as regras propostas pela Comissão Europeia são as seguintes:
- Os limites de 3% do PIB para o défice orçamental e o limite de 60 % do PIB para a dívida pública são para manter;
- A Comissão deixa cair a regra que obriga os estados-membros a cortar a dívida acima de 60 % a um ritmo de 1/20 por ano;
- A Comissão quer deixar de usar a regra do saldo estrutural que exige aos países uma redução de 0,5 pontos até atingir o objetivo de médio prazo;
- A Comissão pretende que a avaliação da política orçamental passe a assentar num único indicador, a despesa primária líquida que exclui encargos com a dívida, receitas discricionárias e encargos cíclicos com subsídios de desemprego; o indicador servirá de base para definir uma trajetória de redução de dívida;
- A Comissão pede aos estados-membros que apresentam um plano para quatro anos com uma trajetória da despesa primária líquida que garanta a redução de dívida para os dez anos seguintes, com uma redução entre 0,5 e 1% ao ano;
- Os planos nacionais são avaliados pela Comissão e o Conselho e a Comissão monitoriza anualmente os planos.
Com base nas orientações da Comissão, o Conselho adotou, em 14 de março de 2023, algumas conclusões sobre a reforma da governação económica:
- Os valores de referência consignados no Tratado Europeu de um défice de 3 % do PIB e de uma dívida de 60 % do PIB deverão permanecer inalterados;
- Os Estados-Membros devem apresentar planos orçamentais e estruturais nacionais de médio prazo que abranjam a política orçamental, as reformas e os investimentos; os planos deverão traçar uma trajetória orçamental nacional definida em termos de despesa primária líquida a título de único indicador operacional;
- Os planos nacionais devem ser coerentes com a trajetória técnica da Comissão, baseada numa metodologia comum, que coloque a dívida numa trajetória suficientemente descendente ou em níveis prudentes, preservando, simultaneamente, a sustentabilidade das finanças públicas, as reformas e o investimento público; os planos nacionais deverão ser debatidos no Conselho, com base numa avaliação transparente da Comissão;
- A duração do plano orçamental e estrutural de médio prazo poderá ser prorrogada se um Estado-Membro se comprometer a levar a cabo um conjunto elegível de reformas e investimentos;
- O procedimento relativo aos défices excessivos com base no incumprimento do critério do défice de 3 % deverá permanecer inalterado;
- O controlo deverá ser mais eficaz, uma vez que uma maior apropriação nacional deverá facilitar a tomada de decisões em matéria de sanções; deverá ser especificada a cláusula de derrogação de âmbito geral no caso de importantes perturbações para garantir clareza e previsibilidade em circunstâncias claramente definidas; uma cláusula de derrogação específica por país pode permitir desvios temporários em relação à trajetória de ajustamento orçamental;
- O procedimento relativo aos desequilíbrios macroeconómicos continua a ser crucial no que se refere a detetar, prevenir e corrigir os desequilíbrios; deverá assumir uma natureza mais prospetiva, centrando-se mais nos desequilíbrios emergentes e baseando-se mais nas previsões;
Aqui chegados, ficamos com a sensação positiva de que o compromisso orçamental proposto assegura as condições mínimas para executar os programas para a década e que, nessa medida, é reconhecida a importância e o papel nuclear das políticas de carácter mais redistributivo como é o caso da política de coesão. Seja como for, e apesar das transições e dos planos de ação, estamos, de certo modo, em compasso de espera enquanto aguardamos pelo desfecho da guerra e por um novo equilíbrio multipolar e geopolítico.
Com efeito, por detrás desta primeira cortina os problemas de sempre permanecem perfeitamente alinhados e à espera de uma abordagem mais reformista e promissora no quadro europeu. Senão vejamos. Em primeiro lugar, o aumento dos recursos próprios e a unanimidade em matéria fiscal bloqueiam, por exemplo, a harmonização legislativa nesta matéria e na área das ajudas de estado. Em segundo lugar, a ausência de uma verdadeira mutualização e federalismo fiscal e orçamental faz com que as duas autoridades, financeira e monetária, se vigiem mutuamente e nem sempre da melhor maneira. Em terceiro lugar, as despesas com os riscos globais vão crescer necessariamente – segurança e defesa, reconstrução da Ucrânia, acidentes climatéricos, apoio aos refugiados, ajuda e desenvolvimento a países terceiros – o que produz efeitos assimétricos devastadores sobre algumas regiões da União Europeia. Em quarto lugar, o eixo da política europeia e da política de coesão em particular irá deslocar-se mais para leste, se pensarmos, por exemplo, nas despesas adicionais de pré-adesão e adesão requeridas pelos países bálticos do próximo alargamento. Por último, se todas estas tendências se confirmarem não será surpreendente que, no final desta década, seja proposta uma revisão estrutural profunda nas prioridades políticas e nas regras de acesso e funcionamento dos principais fundos estruturais europeus, desde logo, em matéria de política agrícola comum e política de coesão.
Nota Final
A terminar, julgo que se justificam alguns avisos à navegação, agora que se inicia a execução dos grandes programas, PRR e PT2030. Em primeiro lugar, é preciso evitar que a transição ecológica e a transição digital não se transformem em encargos líquidos e alguma perda de competitividade para as PME devido ao retorno lento dos investimentos realizados. Em segundo lugar, é absolutamente necessário que as agendas e os consórcios empresariais não se convertam em armadilhas burocrático-administrativas, apenas servindo algumas empresas já instaladas e não desembocando numa nova geração empresarial de PME lá para o final da década. Em terceiro lugar, é fundamental que o nosso universo de PME passe por uma fase de fusões, absorções e concentrações que as recapitalize e as liberte do garrote da dívida e da vertigem fiscal e financeira.
O PRR e o PT 2030 são a derradeira oportunidade para a modernização do tecido empresarial. Não haverá outra política de coesão com tal generosidade, pelo menos no lado ocidental da União Europeia. Por isso mesmo, não podemos permitir que os fundos europeus se transformem numa espécie de placebo da economia portuguesa e que, mais uma vez, a terceira década do século XXI seja a década do nosso descontentamento.