Nas últimas eleições autárquicas, em 2017, o centro e a direita democrática obtiveram o seu pior resultado eleitoral autárquico de sempre. Ainda pior que o de 2013, que por sua vez também tinha sido o pior de sempre. A título de resumo basta verificar que o PSD partiu para este ciclo eleitoral com a presidência de câmara de apenas 5 concelhos (Cascais, Braga, Feira, Maia e Famalicão) no conjunto dos 24 concelhos portugueses mais populosos do país, com mais de 100 000 habitantes.

É, pois, a partir da dimensão destes resultados que se deve partir para uma análise séria dos desafios que se colocam ao campo político que pretende contrariar a hegemonia socialista e esquerdista no poder do país.

Não haja dúvidas: o PSD e o CDS, partidos fundadores da democracia portuguesa, e repositórios históricos da representação do eleitorado não socialista em Portugal, têm um desafio de viabilidade nas áreas metropolitanas, em Lisboa e no Porto, e nas maiores cidades de Portugal.

Mas o desafio é ainda mais transversal para o futuro do próprio regime: as grandes periferias suburbanas não podem continuar entregues à sua sorte pela democracia. Em cidades-dormitório como a Amadora, Loures, Odivelas, ou Seixal, os partidos políticos deixaram de representar largos sectores populacionais, não conseguem responder aos ressentimentos e ansiedades de massas atomizadas, anonimizadas, e objetivamente desprezadas pelo sistema político e ignoradas pelo complexo cultural-mediático vigente.

Quem faz política, jornalismo, e debita opinião profissional no espaço público oficial vive num país de ficção inteiramente concebido por si. Ignora por completo o que é a realidade de um casal de velhotes que vive inseguro na Reboleira Sul, ou a realidade de um miúdo luso-africano de segunda geração que tem que trabalhar como repositor num hipermercado de uma periferia para poder pagar as suas propinas, enquanto partilha um apartamento exíguo com 6 ou 7 pessoas.

Quem me conhece sabe que sou um homem suburbano, da Geração X, que cresceu na Buraca, educado em escolas públicas da Amadora, que brincou na rua, que foi confirmado na paróquia de Nossa Senhora Mãe de Deus, tendo aí sido catequista e liderado um grupo de jovens leigos.

Além disso presidi ao PSD naquele concelho durante seis anos, e fiz no passado o percurso político típico de um dirigente local do PSD: autarca numa Assembleia de Freguesia, deputado municipal, vereador da oposição.

Tenho, portanto, algumas coisas a dizer sobre esse concelho, que penso poderem ser extrapoladas para muitos concelhos periféricos da Área Metropolitana de Lisboa. Tenho nalguns desses concelhos parte da minha família, amigos de infância, vizinhos.

E como morador suburbano estou feliz com a ressurreição do Estrela da Amadora. Ainda vou comprar o frango assado no mesmo sítio de sempre, arranjo o carro sempre no mesmo sítio, almoço ainda no Zé Pinto, no Buraquinho, e no Baptista. Ainda acho o Alentejo Come, em São Brás, um dos melhores restaurantes do país. Recomendo a todos o risoto da Maria Azeitona. E sim, de vez em quando, ainda vou ao Coqueiro, na Cova da Moura, onde fazem a melhor cachupa da Europa.

A minha vida mudou muito, não estou hoje tão envolvido na vida local da minha comunidade de origem como antes. De facto, a minha vida é agora em Lisboa, mas ainda conheço razoavelmente a realidade do concelho da Amadora.

E por isso o que mais me choca é o quanto eu mudei, o quanto a minha vida evoluiu e se alterou, o quanto tantos mudaram, quantos mudaram e se mudaram, e, no entanto, o quanto continua ali na mesma, ou ainda para pior.

Tenho por isso uma noção bem exata do fracasso geral de quem teve estes 23kms quadrados de território nas mãos, e quase nada fez com eles. Pior do que isso: o que se vive na Amadora é uma gentrificação invertida. E, com exceção da boa música, da arte urbana e da banda desenhada, um sítio hoje sem qualquer inspiração, sem qualidade e sem oportunidades.

Há uns meses uma jornalista opinava em op ed (Marta F. Reis, no Jornal I) que “nem todos os concelhos viverão do turismo e o desenvolvimento do país e o combate às desigualdades tem de ser mais firme, mas miséria, mais ou menos visível, há em todo o lado e a Amadora não é o fim do mundo”. Em centenas de artigos de opinião a defenestrar a candidatura de Suzana Garcia que pude ler ao longo destes meses, este foi precisamente um dos que mais me impressionou. Porque encapsula bem a DESISTÊNCIA que o sistema fez das periferias. E ilustra exemplarmente como o sistema do comentariado está viciado para deslegitimar os ressentimentos e para ocultar as frustrações das pessoas concretas. Para esta jornalista a Amadora não é o fim do mundo, mas o facto é que ela própria admite que saiu da Amadora assim que teve oportunidade, de ganhar asas e sair dali.

Tenho lido o ódio do comentariado, e assistido durante meses ao azedume e desconforto do país oficial e instalado, com a candidatura da Suzana Garcia à Câmara Municipal da Amadora. E tenho assistido nas redes aos comentários provindos da maior parte de quem não vive ou nunca viveu por lá, e para quem a ideia de viver na Damaia ou na Reboleira é o equivalente ao ostracismo social ou a um dos círculos do inferno de Dante.

Esse país oficial tem da “multiculturalidade” da Amadora a ideia feita de um imenso kumbaya. Têm a ideia de que a Cova da Moura é um quilombo urbano e deve ser gerida como uma favela. Têm a ideia de que os polícias são uns brutos e de que a delinquência é apenas uma chatice. Têm o sentimento superior de que a classe média ressentida que ali vive é apenas uma massa racista.

Em suma: não têm noção.

Mas também não a querem ter: o facto de ter sido precisamente Suzana Garcia a fazer algo de único nestas eleições, apresentando uma lista candidata à autarquia inteiramente multiétnica e multicultural, apresentando em lugares elegíveis um candidato que será depois de domingo o único vereador cabo-verdiano do país, e a primeira vereadora luso-chinesa, e que apresenta igualmente em lugares de destaque na sua lista candidata, um cidadão muçulmano e um cidadão de fé evangélica, foi ostensivamente ignorado pela comunicação social, que pretende obtusamente, fixar-se numa narrativa canhestra.

Notável país oficial este: a candidata “racista” apresenta uma lista plural, enquanto a candidata socialista representante do sistema apresenta apenas uma lista de pessoas exclusivamente caucasianas e de meia-idade.

O sistema fala da Amadora e das suas pessoas, assim como fala do Seixal ou de Almada, com total pusilanimidade. Falam destes concelhos como o a ministra da cultura fala de cultura:  a tomar um drink de fim de tarde no seu novo Intendente, trendy e gentrificado.

São pessoas a falar de cima para os de baixo.

São pessoas que acham que ir a algum bairro é como ter um momento de turismo antropológico, ou que imaginam que ir até ao Casal da Boba é quase a mesma aventura que ir a um safari no Quénia.

No fundo falam do que não conhecem do alto das suas posições de privilégio.

Não pretendo, contudo, fazer grandes julgamentos morais: afinal todos somos o fruto das nossas circunstâncias. E são precisamente as minhas circunstâncias que me permitem ver que concelhos como a Amadora precisam de uma enorme pedrada de mudança no charco das águas paradas e fétidas da rotina, do conformismo e da indiferença.

A Amadora afunda-se em décadas de declínio social e económico. Não sabe integrar e promover a qualidade de vida de cerca de 10% da sua população que é de origem estrangeira, continuando esta a ser a população com menores rendimentos, com condições de vida piores, ao arrepio de todos os discursos oficiais de inclusão e de proteção da diversidade.

A Amadora apresenta estatísticas e dados miseráveis para uma democracia que ignora as suas periferias:

• Apenas 9m2 de área verde disponível por habitante;
• Um hospital central em situação de rutura, com longalíssimas esperas nas urgências e incapaz de servir condignamente a sua população, sem ligação a qualquer meio de transporte pesado, e onde o poder político socialista optou por cancelar a prevista expansão de Metropolitano e esquecer os suburbanos em favor da construção de uma nova linha circular no centro de Lisboa para servir os mais afluentes, os novos empreendimentos imobiliários de luxo e a indústria do turismo gentrificado;
  Uma insuficiência crónica em matéria de infraestruturas e de serviços básicos de saúde, designadamente em matéria de Centros de Saúde, e em rácio de profissionais de saúde por habitante, sendo que na comparação com AML, e por cada 1000 habitantes, a Amadora possui apenas 2,9% contra 5,7% – uma realidade tão miserável e vergonhosa numa democracia europeia espelhada no facto de as pessoas terem de esperar na rua para serem atendidas por um médico um prédio velho e sem condições, e em pleno centro da cidade, ou com um centro de saúde (Alfornelos) negro de humidade e bolor e com rachas nas paredes onde cabem animais roedores;
• Uma permilagem de 7,2 de Taxa Bruta de Mortalidade Infantil, que é sensivelmente o dobro da verificada na AML (3,7 por mil);
• Péssimos resultados nos rankings escolares e uma taxa de retenção e de desistência no Ensino Básico (16,2%) substancialmente superior à que se verifica na AML (11,3%);
• A vergonha de 28% das crianças da Amadora com idade inferior aos 6 anos não frequentar o ensino pré-escolar;
• O completo fracasso socialista em matéria de habitação onde passadas mais de três décadas do PER, o Município da Amadora continua a ser incapaz de pôr termo aos bairros de barracas, sendo ainda o único concelho da periferia de Lisboa onde subsiste um elevadíssimo número de famílias a viver em bairros e habitações sem condições mínimas de salubridade, segurança e conforto;
• Um concelho com uma elevada concentração económica, geradora de desigualdades e de perda de competição e de oportunidades: as 4 maiores empresas na Amadora detêm 23% do Valor Acrescentado Bruto da economia local;
• E apesar desta realidade, e em paralelo com uma realidade social, económica e urbanística que o continua a colocar nos últimos lugares da AML, o município da Amadora detém uma conta bancária de aproximadamente 100 milhões de euros, sem qualquer capacidade de investir o dinheiro das suas recitas. Incrível, mas a Amadora é o nono concelho do país e não está sequer no Top 50 dos concelhos em termos de investimento municipal.

A Amadora é bem o retrato do fracasso de décadas de socialismo. Mas existem ainda mais Amadoras nas áreas metropolitanas.

E é por isso, neste contexto de inconformismo e de libertação do socialismo e do seu declínio, que a candidatura de Suzana Garcia foi tão útil e tão importante.

Apesar da resistência do velho sistema é importante fazê-lo tremer.  Porque só assim poderemos resgatar para a democracia o sonho da prosperidade e o caminho do elevador social.