Há dias em que o cronista emperra. Não sabe se há de escrever sobre o assunto o do dia, o do momento ou o intemporal. Não quer escrever para as reacções, mas quer despertar reacções. Pensa que, hoje, podia escrever uma coisa mais leve, mas teme que fique leviano. Talvez então um tema mais pesado, mas e o medo de ser chato?

Há dias em que o cronista pensa de mais. Pensa no que este leitor vai achar, e aquele, e o outro, e depois pensa que cronista a sério nunca pensa no leitor – ou, pelo contrário, será que cronista a sério não pode senão levar a sério cada leitor? A começar pela namorada. E pela mãe. E pelo patrão. E aquele amigo mais libertário. E aquela senhora mais conservadora. Que irão achar?

Então, o cronista começa de novo. Muda de assunto. Apaga e alinha novo parágrafo, dois parágrafos, três. Nã. Pára. Já se disse tudo sobre isto. Ou não. Ainda não se disse nada sobre isto, portanto deve ser por alguma razão, porque não interessa ao menino Jesus. E isto ainda se poderá dizer? E o menino Maomé? E o pequeno Buda? O que é que lhes interessa?

E o cronista apaga e recomeça. E vê o tempo a passar. E já devia ter mandado o texto. E não devia stressar com o tempo. Assim vai ser pior. Concentra-se. Vamos falar de política. Não. De desporto. Não. Da questão internacional. Não. De cultura. Não. Do grande tema. Não. Da pequena coisa. Não. E, às tantas, dá por si até a pensar na frase que o editor vai escolher para destaque. Para abrir o apetite. E cai no desânimo. Não há aqui nada que salve. Nada para destaque. Nenhuma perspectiva luminosa. Nenhum lampejo de perspicácia. Nenhuma certeza ardente como um farol. Quem seguiria um fulano às voltas da própria cauda? Vão ler o cronista do lado. Parece mais seguro, mais confiante. Como a rapariga que se desinteressa por nós no bar precisamente a partir do momento em que pensamos “e se ela se desinteressa de nós?” – e a nossa cara já nos traiu. A ordinária.

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Há dias em que o cronista pensa: é só mais uma crónica. E a seguir contrapensa: é mais uma crónica! Se não acrescentar nada à anterior, não arriscar subir mais um degrau, de que serve? E volta ao princípio. E põe em causa. Pousa a caneta ou baixa o monitor. Dá descanso à bateria. Mas como dar descanso à dele? Pede mais uma água. Mais um café. Mais um bolo. Na esperança de que um estímulo qualquer o ponha em marcha. Olha a rapariga na mesa do lado. Escuta a conversa da frente. O nativo digital a teclar furioso. O ciclista na estrada. O par de velhinhos de mão dada. Pensa no avô, que não chegou a ter telemóvel. Andaria de mão dada? Na bengala da avó e no que não precisou de estudar. De repente, ocorre-lhe que os avós foram daqueles dois velhinhos “que nunca viram o mar”. Num país de mar, tão estreito. Em como tanta coisa que parecia tão difícil para eles se tornou tão vulgarmente fácil para nós. E tanta coisa que lhes era fácil parece ter-se-nos tornado tão herculeamente difícil. Andariam de mão dada?

Há dias em que o cronista queria mesmo era falar de outra coisa. Desse tipo de coisa outra. Hoje, queria falar das pessoas que sorriem para os telemóveis. Já reparou no ar maravilhado com que as pessoas olham para os telemóveis? Não é sempre. Não é aquele ar bovino. É o outro. Imediatamente depois de receberem uma mensagem e antes de teclarem, empenhadamente, a resposta. Iluminados, literal e metaforicamente, pelo ecrã e pela ilusão. Estão fora daqui. A conversa levou-vos para fora daqui. Do café, da carruagem do comboio, da sala de espera. Talvez da própria espera.

Os telemóveis mataram a fotografia de rua. Qualquer fotografia de rua encontra agora pescoços curvados e rostos metidos nos telemóveis. Destruiu as linhas de força criadas pelos olhares. O mistério, a contemplação, a sedução, às vezes o simples tédio das personagens anónimas. Mas trouxe-nos isto, este instante mágico em que olhamos os outros enquanto qualquer coisa acontece dentro dos seus corações.

Não é como quando estão a responder a emails, ou a jogar, ou a ver vídeos, ou a fazer scroll infinito. Não é essa fantasmagórica ausência apenas viva pela metade. É outra coisa, fácil de distinguir. É o maravilhamento. O encantamento. O rosto pueril a que já não nos permitimos quando estamos realmente diante de outro ser humano. É uma momentânea perda da consciência de que se está em público. É uma solidão desarmada, de guarda em baixo, uma porta entreaberta para uma intimidade de que talvez já nem elas se achem capazes. Nunca reparou? Preste atenção. Às vezes, é na fila do supermercado. Ou às escondidas, na plateia de uma conferência. No escritório, tantas vezes no escritório. Mais uma mensagem para lá, mais uma espera ansiosa, mais uma réplica comovida para cá, mais um entusiasmo, mais três milímetros de sorriso, mais um ensaio, um serviço, uma palavra lançada por cima da rede, uma pergunta talvez. Queres? Podes? Vamos? Gostas?

Uns estarão a conhecer-se numa app de encontros, outros a continuar a conversa começada junto à máquina de café, outros amantes clandestinos, outros casais legítimos à luz do dia. Todos se namoram. Todos estão dentro daquela bolha que vai, fatalmente, rebentar, mas tão encantadora enquanto se aguenta suspensa na atmosfera, levitando sobre a política e os aeroportos e as guerras e as manifestações e o desporto e a cultura e essas coisas de repente tão encardidamente mundanas.

E esse sorriso sozinho pode ser o princípio de todas as coisas. De todas as mudanças. Se ao menos nos esquecermos de o perder.

Hoje, o cronista queria falar dessa pequeníssima brecha de luz, num mundo onde nos tornámos todos tão descrentes, tão desiludidos, tão pessimistas, tão pouco surpreendíveis (até por palavras que não existem). Deste momento de voyeurismo não tarado. De como, nesses raros instantes, apetece dedicar ao estranho do lado um poema, uma crónica, sem ele saber, não vá chamar a polícia, ameaçar com um processo por assédio literário-sexual.

E, portanto, assim fez.