O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é injusto e ineficiente. Pior do que isso, este resultado é conhecido desde o dia da sua construção. E sempre que alguém fala de outro modelo de organização do sistema de saúde é acusado de o querer destruir ou de deixar as pessoas sem cuidados médicos. Sim, temos de ter um outro SNS. Um SNS que não exclua ninguém, que seja financeiramente acessível e sustentável, e que não trate as pessoas com base nos conhecimentos a médicos e com dinheiro. Temos de recuperar a discussão que remonta a 1979, sem complexos ideológicos.

Vamos por partes.

Um sistema de saúde caracteriza-se por dois vetores: financiamento e prestação.

Um bom sistema de saúde, do lado do financiamento, é aquele que tende em reduzir dependência dos pagamentos diretos para financiar serviços. Sobretudo dos pagamentos de valor elevado. De uma forma simples: um bom sistema de saúde é aquele que nivela os gastos ao longo da vida dos utentes, independente do risco e doença de cada um. A excelência do sistema de financiamento garante ainda que o sistema é sustentável e desgovernamentalizado.

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Do lado da prestação, um bom sistema é aquele que não excluí ninguém e presta os serviços adequados ao risco de saúde. Mas a excelência na prestação não reside apenas no acesso. Passa também pela escolha do clínico, já que um médico toma uma decisão pelo utente – aliás, o médico deverá tomar a decisão que o utente tomaria se tivesse a mesma formação clínica. Assim, a escolha e a relação utente-médico é uma relação de elevadíssima confiança que não pode ser descurada na construção de um sistema universal de saúde. A atribuição de um médico de família ou de especialidade não é uma questão que deva ser resolvida apenas por logística e eficiência –é uma questão de liberdade individual.

Posto isto, há que avaliar a decisão que foi tomada no pós-revolução, em 1979. Ao contrário do que habitualmente se indica, existiram dois modelos em discussão, e não um. A direita parlamentar, à data, não chumbou a criação de um sistema universal de saúde, mas sim a criação deste Sistema Nacional de Saúde.

Vale a pena revisitar os debates parlamentares de então.

Do lado do PSD afirmava-se em maio de 1979: “estudos comparativos recentes mostram que os dois países com melhores índices sanitários são a Holanda e a Dinamarca, precisamente aqueles em que o Estado menos interfere no financiamento e na organização do sistema de saúde. A Inglaterra, com cobertura social completa, ocupa a penúltima posição. E a Alemanha, a rica Alemanha, com três quartos dos seus médicos assalariados não passa de um modesto 6º lugar!“. Do lado do CDS era-se ainda mais claro: o SNS era uma solução “excessivamente conservadora”.

Apesar desta clarividência de quem viveu em 40 anos de ditadura, parte dos deputados estava no caminho certo. Queriam um modelo com prestação privada (porque era o que funcionava melhor), queriam liberdade na escolha dos médicos (porque é um direito fundamental), e queriam um financiamento desgovernamentalizado (porque era mais ágil, e permitia a inovação). O benchmark já eram a Holanda e a Dinamarca.

O modelo escolhido ideologicamente foi o modelo inglês: um modelo em que o financiamento é centralizado e governamentalizado e, acima de tudo, onde o financiamento e a prestação do SNS são quase exclusivamente públicos. Não escolheram o melhor modelo que existia na Europa.

A crítica da ala esquerda parlamentar era como a que existe hoje: a direita estava comprometida a interesses, queria beneficiar privados. E, imagine-se só, diziam que seguia a prática marcelista. Note-se a ironia que a primeira Lei de Bases consagrava essencialmente o acesso universal ao esquema de “caixas” desenhada por Marcelo Caetano. Sim, o nosso SNS foi montado em cima do modelo do Estado Novo. Uma confusão. Ideológica e operacional.

E o que temos na atualidade? O verdadeiro ministro da Saúde é o ministro das Finanças. Este estabelece o teto a gastar e governamentaliza as autorizações de despesa. As cativações, a ala pediátrica no São João, as listas de espera são exemplos máximos desta política centralista e governamental da saúde. Uma Saúde cativada.

O resultado da decisão tomada em 1979 foi o previsto. Os gastos estão descontrolados, o sistema está cativo de diversos interesses. Pior: o sistema não beneficia nem os utentes, nem a saúde pública. O carater universal seria um dos maiores bens. Só que, na prática, não funciona.

É possível fazer muito melhor, mas para isso, é preciso ter a coragem de reformular o sistema.  É preciso ter coragem de saber reconhecer bons exemplos. É preciso garantir não apenas os vetores prestador e financiador, mas o pilar esquecido: o utente.

Até quando vamos estar presos à ideologia? A Saúde não pode esperar.

, gestora e membro da Iniciativa Liberal