Não sei se interessa pensar se Barbie é um filme que vai ficar para a história. Nem tão pouco pensar se os nossos futuros adultos (ou já adultos) identificaram a referência a 2001 Odisseia no espaço: São perguntas que, caso nos obriguem a pensar na resposta, podem desiludir, deprimir e suscitar pensamentos como os que Barbie vem desenterrar neste filme “Já pensaram na morte?”

Habituei-me a ver qualquer filme sem pretensão cinematográfica. Quando era uma adolescente, a minha inflexibilidade e rigidez de pensamento apenas me permitia ver os filmes que já antecipava que iria gostar, talvez por preconceito cultural ou predisposição arrogante e intelectual. Hoje, a veia de psicóloga, penso eu, deixa-me ver qualquer filme, desde os mais mainstream, que os críticos de cinema costumam avaliar com uma bola preta, até àqueles que ninguém sabe sequer que chegaram a estrear.

Depois de ver Barbie, há coisas que ficam e que ganham ainda mais comicidade quando saímos da sala de cinema e “voltamos para o mundo”. A Barbie é uma boneca e é plástica, mas a sua jornada de ambição fá-la desejar tornar-se humana. É curioso pensar o que significa ser humano em 2023. Vivemos das redes sociais, e é cómico que possamos todos parecer bonecos que ali publicitam as suas vestimentas, as suas casas, os seus carros, as suas viagens… Barbie é uma boneca e por isso não come nem bebe, nenhum objecto representa verdadeira utilidade na sua vida, logo Barbie não tem telemóvel, não publica, não faz “tags”, não faz “likes”. A Barbie está livre deste flagelo, mas nem por isso se sente mais humana. Por momentos, dá vontade de perguntar “Sabes mesmo como é o mundo onde te queres meter?”

O filme tem sido apontado como uma revolta feminista, uma bandeira da igualdade, uma crítica cósmica ao patriarcado e ao mundo que ainda é dos homens. Barbie fica desencantada com o mundo dos humanos, onde é objetificada, onde é desvalorizada, onde é “apenas uma mulher”. Às vezes, parece que temos cada vez mais uma vontade evidente de mostrar esta luta, mas também uma necessidade desenfreada de masculinizar e feminilizar sentimentos, poderes, pensamentos. Fico sempre com o desejo escondido de que, de repente, homens e mulheres, Barbies e Kens, se unam e se olhem num sentimento de humanidade, um multiverso onde realizem, de repente, que são humanos, onde não se grite apenas “eu sou mulher!”, “eu sou homem!”. É verdade que hoje cada vez mais se querem gritar coisas diferentes, mas tenho esse desejo que um dia se grite uma coisa igual – “eu sou humano!” Não sendo uma desvalorização da possibilidade de ser tantas outras coisas, ser humano é ser tudo ao mesmo tempo.

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A Barbie pensa na morte e talvez seja isso que a torne humana, mais do que a sua vontade de criar ideias, de ficar na história, de fazer parte do mundo dos que orquestram e manipulam os bonecos. Barbie talvez não saiba que cada vez mais parecemos bonecos orquestrados por alienações contínuas. Conseguimos ver no vislumbre de Barbie um receio, mas também uma admiração pela velhice. Barbie cruza o olhar com uma senhora idosa na paragem do autocarro e eu, na reflexão e nos pensamentos cruzados que me boiam na cabeça quando chego a casa, realizo que esse encontro espontâneo de duas desconhecidas só aconteceu porque Barbie é uma boneca e não tem um telemóvel no bolso.

Barbie chora, aptidão que é uma novidade para uma boneca. Ken também chora, mas a representação do choro no homem e na mulher também é diferente. Em Barbie, o choro parece sério, parece uma realização de um poço negro de angústias e da finitude da vida; em Ken, o choro parece um ato fútil, sem profundidade e desgosto. Pode ser uma decisão criativa, uma crítica social, mas no filme que passa na minha cabeça por vezes imagino um final alternativo, em que Barbie e Ken choram e realizam, juntos, esse desejo de serem humanos, esse desejo de sofrer, mas de viver também.

Barbie faz a sua passagem do mundo das bonecas para o mundo real de mãos dadas com uma senhora idosa, ambas plantadas no vazio, numa espécie de buraco negro branco sem fundo. Facilmente imaginamos que aquela senhora, frágil, pequena, poderá vir a ser aquela mulher ao lado dela, aquela mulher alta, esbelta, jovem, forte. Esse contraste com a fragilidade da velhice e o vigor da juventude parece uma pedra de gelo que se nos enfia no fundo da garganta. Nesse momento, tudo se torna aterrador e, por um instante, até parece que Barbie já morreu, passa-nos pela cabeça que Barbie já esgotou esse segundo de vida que todos temos.

De repente, já quase não me lembro do feminismo, do patriarcado e apenas penso que a Barbie está tão sozinha, não está ali o Ken, nem os amigos, as amigas, ninguém. Barbie está sozinha com um reflexo do que poderá vir a ser a sua imagem. Antes de partir para este novo mundo, Barbie e Ken trocam um diálogo em que reafirmam as suas identidades individuais, já não existe a Barbie e o Ken, já não há um “e” a juntá-los. Compreendo que o individualismo faça parte do século XXI, aliás os nossos telemóveis já vêm com ferramentas integradas, uma espécie de algoritmo, que contam com orgulho o número de horas que passamos a falar com “eles”, com os telemóveis, digo. Talvez seja uma humilhação para nós, no fundo estão a contar o número de horas que passamos sozinhos.

Talvez eu tenha uma alma antiquada, mas não consigo ver o desencanto de existir a Barbie e o Ken, o João e Maria, a Maria e a Mariana, o João e o Pedro. O facto de estarmos juntos e de precisarmos de alguém não quer dizer que somos menos gente. Sim, eu sei que é uma tentativa de mostrar que as mulheres não precisam dos homens para nada e que os homens também não precisam das mulheres para nada, e que os homens não precisam de outros homens, e que as mulheres não precisam de outras mulheres e vice-versa vezes mil. Mas alguém acredita que é verdade? Sim, já sabemos que morremos sozinhos, mas é preciso querermos tanto viver sozinhos também? Quando é que será que passámos a ter vergonha de mostrar que precisamos de alguém, de mostrar que alguém nos influenciou? Eu sei que eu sou eu, mas a história do nosso “eu” será sempre a história do “eu e os meus pais e os meus irmãos e os meus avós e os meus primos e os meus amigos e os meus amores e os meus desamores…” Eu não sou só eu, e ela também não é só a Barbie nem ele é só o Ken.

Também sei que isto é tudo só um filme, mas sempre é melhor escrever sobre ele do que deixar que o telemóvel esteja a contar o número de horas que passo sozinha com ele.