Nunca fui à Madeira. Mea culpa. Açoriano de gema, dava-me mais para fugir para o continente, quando me apetecia variar o horizonte, do que para o arquipélago ao lado. E, quando mudei para terra firme, como diziam os antigos navegantes, sempre que precisasse de repor os níveis de salinidade de Atlântico Norte, é claro que era a casa-mãe que primeiro aparecia no ponto de fuga. Há muitos ilhéus assim. Nada pessoal; só uma questão de trajectórias. Mas hei-de lá ir, e continuar a ler os meus Tolentinos e Agostinhos Baptista, e a beber poncha e a saudar os meus amigos madeirenses.
Ora, tudo isto, no entanto, não me deixa ser um conhecedor profundo daquela região. E é só talvez por isso que não compreenda bem as reacções mediáticas às eleições de domingo passado.
Noutro sítio qualquer do mundo civilizado, ganhar com mais do dobro dos votos do segundo seria uma cabazada. Continuar a ganhar ao fim de quase 50 anos de eleições consecutivas, seria histórico. Fazê-lo ainda por cima, desta vez, ganhando em todos os concelhos e em todas as freguesias – contem bem: t-o-d-a-s – seria, como dizer?, épico.
Mas na Madeira, pelo que percebi, não é assim. Ter feito isto tudo, mas ter perdido um deputado, conta como derrota. Precisar de 24 horas para assegurar um governo de maioria absoluta equivale ao princípio do fim (no continente, 24 horas não dão nem para fazer um cartão do cidadão, quanto mais um governo. Compreenderá, por isso, a nossa perplexidade). Ter-se esticado em campanha e dito que se demitia se não tivesse essa mesma maioria absoluta, a única responsabilidade que, no fim de contas, importava pedir.
Que região extraordinária. Que outras coisas excepcionais ali terão lugar? Teletransporte? Leitura de mentes? Porcos que andam de bicicleta? Utilizadores de trotinete responsáveis? Tenho de comprar a minha viagem rapidamente.
É que, visto à distância, parece não ter acontecido nada de especial ao PS, que após meio século de direita no poder, não está nem um bocadinho mais perto de a derrubar. Que, pelo contrário, perdeu quase metade dos deputados. Que tem agora menos de um quarto da Assembleia – menos de um quarto. Que passou de 35,7% nas eleições de 2019, para 21,3.
Verifiquem com os vossos olhos a imprensa dos últimos dias. David Dinis conseguiu a proeza de escrever no Expresso um artigo com o seguinte título: “PSD em mínimos, direita em perda, PS na média, esquerda sem futuro: um guia em seis pontos para perceber melhor os resultados na Madeira”.
Eu li, mas não percebi. “Direita em perda, PS na média”. Estava ilustrado com uma foto de Miguel Albuquerque com um ar preocupadíssimo. Mas se eu o ler no Funchal. Se eu o ler em Câmara de Lobos. Se eu o ler plantado nas Desertas. Talvez aí compreenda. Talvez aí perceba que mundo é este em que imprensa de referência consegue olhar para umas eleições em que a direita obteve 52% dos votos (e não estou a contar com a IL) e a esquerda 26%, e dizer que perderam as duas, ou pior, que a direita perdeu e o PS ficou “na média”.
Bem sei que, hoje, e também para lá de Vilar Formoso, não basta à direita ganhar; ou ganha de forma esmagadora ou é entendida como uma ameaça à democracia que urge por todos os meios travar, mesmo que para isso seja preciso engolir sapos, espadas, contorcer a espinha, fazer o pino, dormir com o inimigo e dar tiros nos pés até se acabarem as balas.
Mas, até aterrar no célebre aeroporto do Funchal e começar a sentir aquele vento, mais a floresta de Laurissilva e as espetadas e a selfie com o busto do Ronaldo, vou achar, simplesmente, que começamos a ter um problema grave na imprensa portuguesa. O mesmo problema que constitui uma das causas da assustadora clivagem política americana. Se a imprensa de referência se deixa conduzir pelos seus preconceitos, quaisquer que eles sejam, em vez de olhar para a realidade crua e simples dos factos, não se admirem que cada vez mais cresçam as páginas de jornalismo falso e os movimentos políticos extremistas. Não é por acaso que, a pouco e pouco, o Chega vai trazendo a jogo todos os truques dos manuais dos populistas internacionais: as páginas com templates a mimetizar a imprensa “séria” ou os, por enquanto, pouco-deep-fakes (a suposta declaração de Alberto João Jardim a apelar ao voto no Chega ainda foi feita num simples meme, vulgo, a velha fotolegenda, mas, na próxima, já vai ser feita em vídeo, com a voz do próprio e uma ajudinha da inteligência artificial).
Luís Montenegro foi visado por celebrar uma vitória que, disseram, não era dele e pecava por escassa; o todo-poderoso primeiro-ministro António Costa, que, há quatro anos, celebrou um segundo lugar por ser “o melhor resultado de sempre” do PS na Madeira, agora nem apareceu em lado nenhum, deixando a uma segunda figura do partido a responsabilidade de explicar como é possível que o PS, depois de décadas de desgaste do PSD no poder, não consiga mais do que ficar quase reduzido a metade do que era – e já não era muito.
E há mais. Enquanto a CDU segurava “o” seu deputado único, falava em “derrota indisfarçável” da coligação PSD/CDS e ninguém lhe dizia para ter a noção do ridículo e deixar a nossa paciência em paz, por cá, comentava-se, como sempre, o perigo do crescimento do Chega, que passou de zero a quatro deputados (basicamente, o mesmo que IL, CDU, Bloco e PAN juntos).
Não lhes passa pela cabeça que têm uma responsabilidade nisso. Que o paternalismo (para usar um eufemismo) com que tratam o eleitorado é parte do que espoleta a reacção materializada no voto nos partidos de protesto, pretensamente “anti-sistema”. Porque o sistema nunca é só político; é político-mediático. Em França, nos Estados Unidos ou aqui, a revolta nunca é apenas contra um partido; é contra “eles”, o status quo, o mundo que entra televisão dentro e que os revoltados, nos seus ecrãs mais pequeninos e interactivos de telemóvel, julgam poder derrubar.
Os quatro deputados do Chega não vêm da direita. É fazer as contas. O deputado perdido pela coligação PSD/CDS pode, facilmente, ser encontrado no que foi para a IL. Mas para onde foram os oito que o PS perdeu? Um para o regresso do Bloco ao parlamento, outro para o do PAN, dois para o Juntos Pelo Povo, que passou de três para cinco e assim se tornou a terceira maior força política na região. E os outros quatro? Os restantes quatro deputados que vão dar corpo ao descontentamento com o longo reinado do PSD na Madeira e que o PS nunca conseguiu beliscar? Para onde é que acha que eles foram?
Pois é, amigo leitor. Tenho de ir à Madeira. Quem sabe lá as galinhas ainda têm dentes e quatro não é igual a quatro.