Berbice é o nome de um dos rios que nasce e corre na actual Guiana, indo desaguar no Atlântico. No século XVIII ambas as margens desse rio estavam salpicadas de plantações possuídas ou concessionadas pela Societeit van Berbice (Companhia de Berbice), que operava sob a soberania das Províncias Unidas, como eram então designados os Países Baixos. Havia outras plantações em idênticas circunstâncias no Canje, um dos afluentes do Berbice perfazendo, no total, 135 propriedades exploradas e habitadas por apenas 350 europeus — holandeses, alemães, suíços, franceses, etc. —, mas trabalhadas por mais de 5 mil escravos vindos na sua esmagadora maioria de África. A possibilidade de fuga desses escravos era reduzida porque em redor do rio viviam populações índias que faziam causa comum com os brancos e que capturavam os negros fugitivos, devolvendo-os à procedência e ao correspondente e cruel castigo. Para os escravos o Berbice e o Canje constituíam uma vasta prisão onde estavam muitas vezes sujeitos à brutalidade de alguns plantadores e/ou dos seus capatazes (geralmente negros).

No início de 1763 estalou uma grande revolta de escravos em várias plantações dos rios Berbice e Canje. Os revoltosos apossaram-se de armas e de pólvora e ao som de tambores foram tentando espalhar a rebelião pelas cercanias, o que não foi tão fácil quanto se poderia imaginar. Muitos escravos recusavam-se a aderir à rebelião, mas foram coagidos a fazê-lo através de ameaças aos próprios ou às famílias. Quem, ainda assim, resistiu foi morto ou chicoteado e sujeito a trabalho forçado. Alguns, apercebendo-se de que a adesão à revolta implicava um novo regime de coerção, conseguiram fugir, passando a viver na selva.

No primeiro dia de insurreição os rebeldes mataram selectivamente alguns europeus e capatazes negros. Talvez por ser particularmente odiada, a mulher de um desses europeus foi decapitada e a sua cabeça espetada numa estaca na margem do rio. Nos dias seguintes, mais cabeças se lhe juntaram à medida que outros brancos iam sendo mortos. Nessa fase inicial do levantamento, os revoltosos executaram mais de 40 pessoas brancas (homens, mulheres e crianças), tendo algumas delas sido postas a trabalhar nas cozinhas ou nas hortas, antes de serem mortas.

Conhece-se bastante bem a intencionalidade dos revoltosos porque houve troca de correspondência entre o seu líder, Coffi, e o governador holandês. Inicialmente os escravos rebeldes queriam ficar senhores de Berbice, isto é, proprietários de todas as plantações e houve um momento, no início do levantamento, em que terão dominado o curso do rio quase até à sua foz. Posteriormente, propuseram a divisão da colónia em duas metades, ficando a parte a jusante para os holandeses e a outra parte para os rebeldes. A ideia dos negros de Coffi era a de viverem lado a lado com os holandeses, como vizinhos e iguais, explorando uma economia de plantação. Para eles era importante manter as plantações a produzir, não apenas para eventual exportação de açúcar e outros géneros tropicais, mas também para obter a aguardente de cana que muito apreciavam. Ou seja, os líderes da revolta queriam liberdade para governar uma parte da colónia, onde continuariam a explorar o trabalho forçado. De quem? Dos negros de outras etnias que não tinham aderido de livre vontade ao levantamento. Segundo várias testemunhas, o próprio Coffi os informou de que “agora teriam de ficar escravos dos outros negros e trabalhar para eles como tinham feito para os Cristãos”. E, de facto, esses negros reescravizados eram chicoteados se se recusavam a cortar a cana-de-açúcar ou a fazer o restante trabalho da safra açucareira.

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Ou seja, os revoltosos começaram de forma quase imediata a reproduzir o modo de funcionamento dos brancos que haviam destronado. Coffi formou um governo e uma administração, auto-promoveu-se a governador e rodeou-se dos serviços de um conselho, um chefe militar, um encarregado da justiça e um carrasco. Essa clique dominante tomava as refeições nas salas e mesas dos senhores e apossou-se das roupas e jóias dos brancos, usando-as para assinalar o seu novo estatuto. A toda essa gente, e ao próprio Coffi, claro, foram atribuídos escravos para os servir nas suas necessidades quotidianas.

Mas o curso das coisas não foi o que os revoltosos desejavam. Inicialmente empurrados para a foz do rio, os brancos sobreviventes e os negros que haviam permanecido fiéis começaram a receber apoio das colónias vizinhas e, posteriormente, da metrópole. A pouco e pouco as autoridades e forças coloniais foram avançando em direcção à nascente do rio e reconquistando as suas margens. Talvez por isso, mas também por importantes tensões e desavenças entre os revoltosos, Coffi suicidou-se em data incerta (provavelmente em Setembro de 1763) e o comando da revolta passou para Atta. Foi ele que a conduziu na sua fase final e que ordenou o incêndio das plantações, à medida que os insurrectos iam recuando. Posteriormente Atta seria capturado e a revolta esmagada. Julgados e condenados, os líderes rebeldes foram queimados vivos ou executados de outras formas cruéis, como era habitual, na época. No total os juízes condenaram à morte 120 homens e quatro mulheres.

Tudo isto e muito mais pode ler-se em Blood on the River. A Chronicle of Mutiny and Freedom on the Wild Coast (Londres, 2022), um livro escrito pela historiadora Marjoleine Kars e vencedor do prestigiado prémio Frederick Douglass. Blood on the River é boa e sólida historiografia porque é equilibrada, não procura distorcer os acontecimentos, não omite informação relevante nem toma partido.

Aconselho, por isso, a leitura desse livro a quem se interessa pelo tema, e em especial àqueles que estão erradamente convencidos de que as revoltas escravas eram manifestações de anti-escravismo e formas de combater a escravidão — por norma não o eram, mas apenas acontecimentos sangrentos, geradores de novas servidões. Aconselho-o sobretudo àqueles que, quando se fala em revoltas escravas, evocam invariavelmente o caso da rebelião de Saint-Domingue, iniciada em 1791 — ou seja, 28 anos depois da de Berbice —, rebelião que viria a originar o Haiti. Talvez Blood on the River os ajude a perceber que o curso da revolta de Saint-Domingue foi excepcional por várias razões. Em primeiro lugar porque foi desencadeada numa altura em que as ideias e iniciativas políticas abolicionistas já circulavam; depois, porque ocorreu em plena Revolução Francesa e seguiu o seu curso errático e explosivo; por fim porque grande parte dela decorreu num contexto de guerra, fosse ela civil, entre franceses, fosse contra a Espanha e a Inglaterra. Por essas e outras razões o grande levantamento de escravos em Saint-Domingue foi peculiar. A generalidade das revoltas escravas, sobretudo as ocorridas antes do Haiti, não pretendiam acabar com a escravidão, como o exemplo de Berbice claramente revela.

O que era usual nas sublevações de escravos foi o que aconteceu em Berbice, não no Haiti. Quem acabou com a escravidão foram os abolicionistas, maioritariamente brancos, não os escravos negros rebeldes. E não se diga que os abolicionistas o fizeram apenas por interesse material pois isso é falso. Sim, é verdade que o projecto abolicionista inicial assentava na convicção de que haveria grande interesse económico em pôr fim ao estado de escravidão porque — supunha-se — um homem livre trabalharia mais e mais eficazmente do que um escravo. Mas quando, em meados do século XIX, a experiência mostrou que essa suposição estava errada e que, nos trópicos, a mão-de-obra escrava era mais produtiva e mais barata do que a de gente livre, os países ocidentais ainda assim não desistiram da abolição e persistiram na sua vontade de emancipar os escravos porque era moral e politicamente indigno não o fazer.

Só uma nota mais: há uma teoria que afirma que as revoltas escravas teriam provocado um medo de tal forma grande entre os brancos que os haviam levado a abolir a escravidão. Essa teoria é falsa e a grande revolta de Berbice é mais uma prova disso mesmo. Atente-se que essa revolta ocorreu em 1763 e que os Países Baixos só viriam a abolir a escravidão em 1863, isto é, um século depois. Não, nunca foi o medo que motivou  o abolicionismo dos ocidentais.