Há algo bom em escrever à sexta-feira. É verdade que, muitas vezes, não se acrescenta nada às polémicas da semana, mas, aqui chegados, os ataques mais violentos e os argumentos mais lógicos sobre qualquer assunto já foram apresentados. Por isso, ser carro vassoura, mesmo que o tema seja a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, também tem aspetos positivos.

Neste, como noutros casos, parece-me que a postura mais acertada a tomar é fazer perguntas. Há demasiadas afirmações fechadas, juízos definitivos e certezas consolidadas. Mas, também considero que é importante não desfazer argumentos na análise de uma só situação específica, para não correr o risco de acabarmos numa discussão de surdos.

O primeiro bloco de perguntas necessárias prende-se com o seguinte: tem existido – e parece-me que justamente – uma crítica à cultura de cancelamento e de vigilância da linguagem, que tem tentando postular as regras de um pretenso “discurso de ódio”. De que forma é que a exigência de reparações e pedidos de desculpas por uma ofensa ocorrida na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos é, ou não, entrar no mesmo caminho que se tem vindo a denunciar no wokismo? De acordo com o “World Watch List”, em 2023, 5.621 cristãos foram mortos e 360 milhões foram perseguidos pelo simples facto de o serem. Diante destes dados é proporcional falar em blasfémia, quando está em causa uma representação cénica – seja ou não da última ceia? Geralmente, refere-se que o movimento woke se irrita com palavras que são só palavras, com pinturas que são só pinturas, fazendo equivaler palavras e ações, como quando, por exemplo, afirma que o uso da palavra “negro” é, por si só, racista. Não estaremos diante de algo paralelo?

Um outro bloco de questões prende-se com os limites que se podem ou não colocar a uma representação de Cristo. O que é uma representação “ofensiva” ou “abusiva” de Cristo? Um Jesus Cristo representado segundo os padrões arianos ou asiáticos não será abusivo diante de alguém que, claramente, não possui esses padrões genéticos? E até que ponto é legítima uma inculturação da imagética cristã? Se, numa prisão, se retratar Cristo como prisioneiro, comendo com os seus discípulos, também eles prisioneiros, isso seria ofensivo? Se Cristo é a totalidade e a plenitude da humanidade, onde se inclui, também, a humanidade que não se encaixa nos padrões legais e culturais, qual é a representação cristológica que exibe de maneira mais eficaz e eficiente esta convicção teológica? Qual a diferença entre uma representação burguesa, de mau gosto, kitsch e uma representação ofensiva? E se concluirmos que estamos diante de uma imagem gratuita, abusiva e agressiva isso é sinal da morte do cristianismo, ou sinal do eco – mesmo que pelo reverso da medalha – que a cultura cristã ainda possui nos nossos dias? Se o Cristianismo é – no entendimento da teologia católica – um evento histórico permanente, o que será mais problemático: continuar a representar Cristo com os padrões de um tempo histórico e artístico que já não existe, recusando graficamente a “novidade” cristã, ou representar Cristo segundo os novos desafios éticos, morais e políticos do mundo? Se o catolicismo é, por definição, universal, quem pode estar excluído da mesa da “última ceia”, já que, o próprio Leonardo da Vinci – o pai do protótipo usado neste caso – incluiu Judas na cena?

Por fim, é importante interrogar o que se entende por profanação. Como escreveu Johann Baptist Metz, não será que “a profanação do mundo, tal como se apresenta no seu processo moderno e se nos revela hoje de forma mais global e aguda, se desenvolveu através do cristianismo e não contra ele”? Não será possível afirmar que a grande vitória do cristianismo é precisamente a profanação do mundo, entendida aqui, por exemplo, com secularização, em contraste com o modelo sacral pré-cristão? O historiador Tom Holland, num livro chamado “Dominion: How the Christian Revolution Remade the World”, defende que valores considerados modernos, como a igualdade, os direitos humanos e a preocupação pelos marginalizados, têm as suas raízes no Cristianismo. Isso não nos deveria levar a uma interpretação positiva da idade secular? Quando é o balanço justo entre a denúncia da exclusão do cristianismo do espaço público e a vitimização do cristianismo?

No meio de tantos pontos de interrogação há pelo menos algo que me parece evidente: a pertinência do debate é mal servida com armas em punho. Há blasfémias a mais e perguntas a menos.

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