Embora esperado, o Relatório da Comissão Independente sobre o abuso de menores na Igreja Católica, há dias apresentado com direito a transmissão directa pela TV e integralmente publicado horas depois, é obviamente chocante.
Uma realidade tão generalizada em tantas dioceses por esse mundo, conforme nos é dado a conhecer por outros relatórios congéneres estrangeiros — deixando de lado, por agora, a crítica do seu rigor metodológico — mantinha-nos de algum modo longe deste flagelo. Agora toca-nos na nossa terra, aos portugueses. E é como se nos tocasse num familiar próximo.
Muita coisa já foi dita e bem, como, por exemplo, neste artigo publicado por Luís Barreira de Sousa, que subscrevo inteiramente. Por hoje deixo apenas esta observação: a informação dada pelo Dr. Pedro Strecht, já após a publicação do Relatório, de que ainda estão “no activo” cem ou mais abusadores, a maior parte dos quais são padres, e cujos nomes serão transmitidos à Conferência Episcopal e ao Ministério Público, é no mínimo alarmante. Por um lado, até os nomes serem do domínio público, fica como que lançada sobre todos os padres uma generalizada suspeita, certamente injusta para a grande maioria dos restantes sacerdotes que não constam da lista. Por outro, quem tenha responsabilidades educativas directas sobre crianças ficará, assim, pelo menos inquieto em relação a quem as entrega na creche, na escola, no internato ou na catequese. Pergunto-me a quem servirá esta notícia antecipada? Que utilidade tem?
Mas por ora quero apenas partilhar despudoradamente um desabafo condoído. Sem autocensura, como num divã de psicanálise. Que o Observador me perdoe.
Tanto as vítimas como os abusadores são parte da Igreja, tal como as demais pessoas baptizadas. E toda a Igreja sofre com o pecado e o sofrimento de um só, tal como toda ela se alegra e enriquece com a virtude e a santidade de um só. Que desolação! Choro como católico! A minha identidade católica chora!
— Meu Deus, ao que chegámos! Que miseráveis somos! Quão necessitados estamos da tua redenção libertadora! Quão necessitados estamos da tua salvação! Quão necessitados da tua cura! Como isso se torna tão cruamente evidente.
A condição patológica de pedófilo, a de abusador não-pedófilo, a de vítima inocente, a de responsável hierárquico negligente, todas elas inspiram-me o mais profundo dó. Todas essas pessoas não deixam de estar, consciente ou inconscientemente, profundamente feridas na sua dignidade. Não na dignidade ontológica de seres humanos, que essa nunca se perde, apesar da aparência; mas na sua dignidade moral.
Todas essas pessoas de algum modo se revelaram gravemente feridas na sua liberdade: umas pela compulsividade dos reiterados comportamentos; outras pelo abuso do poder clerical dos malévolos sedutores, que as oprimiu; outras pela cobardia que representa a ocultação de um acto abjecto em favor da imagem institucional. Todos escravizados por um bem inferior relativamente ao bem maior que é a sua dignidade moral, o seu êthos pessoal ou o que advém da sua condição sacramental de ordenados ou de religiosos com votos emitidos publicamente.
Como disse, tenho pena de todos, se bem que por motivos e modos muito diferentes. Todo este flagelo dos abusos sexuais na Igreja Católica, cuja denúncia pública explodiu violentamente em Janeiro de 2002, com a heróica reportagem do The Boston Globe, revelou também um aspecto que me parece tem sido pouco sublinhado e tratado: a vulnerabilidade a que está sujeita a própria credibilidade da Igreja.
Este facto chamou-me a atenção para a vulnerabilidade a que o próprio fundador da Igreja se sujeitou ao assumir a condição humana, a ponto de sofrer e morrer de amor por cada ser humano. Se Jesus Cristo, o Filho de Deus, se tornou assim vulnerável, como não o sermos também nós e a sua Igreja?
De facto, com todo este drama, sucedem-se as pessoas que perdem a fé, não só as vítimas (embora muitas, como mostra o Relatório, a mantenham heroicamente), mas também muitos outros.
Nos últimos anos, as notícias sobre os níveis da defecção de fiéis católicos pelo mundo Ocidental, onde são periodicamente feitos inquéritos sérios, são devastadoras. A própria Igreja, a todos os níveis da hierarquia e dos leigos, está numa profundíssima crise de identidade e de fé, que não devemos escamotear, subvalorizando, mas enfrentar.
Vai sendo cada vez mais claro que dar as razões da nossa fé, explicar o seu porquê pessoal, torna-se cada vez mais exigente, ao ponto de ser cada vez mais necessário pedir:
— Senhor, aumenta a nossa fé!
Se este mesmo mundo Ocidental está cada vez mais decadente e problemático, não duvido que muito é devido a uma generalizada perda da presença da transcendência divina e cristã. Para muita gente Deus morreu de facto e a noção do Bem, é apenas determinada pela sua autonomia levada ao absoluto, a qual, por sua vez, é movida pelos mais baixos instintos e sentimentos de morte. E a Igreja parece não conseguir escapar ela mesma ao laicismo, e até ao anticlericalismo, da sociedade que a rodeia e também habita.
Estou, assim, convicto de que um dos factores etiológicos deste flagelo no clero é o descuido da fé. Da forma descuidada como alguns dos próprios membros do clero alimentam a sua fé. Os padres, de uma maneira geral, andam num activismo desmesurado. Sabemos que num âmbito geral são poucos, cada vez menos, nos seminários diocesanos. Porque será? E não podem dar o que não têm ou não cultivam. E muitos entraram no seminário pelas razões erradas e mal discernidas e, diga-se, negligentemente escrutinadas. A propósito, já aqui no Observador dei a conhecer um texto (de Abril 2019) do então Papa Emérito Bento XVI intitulado A Igreja e o escândalo do abuso sexual, que agora deveria ser relido.
Especialmente impressionante é a constatação do “colapso da teologia moral católica” devido ao abandono da moral natural; e de que nos seminários houve “de facto um falhanço de longo alcance” reconhecendo, contudo, Bento XVI que houve alguma melhoria desde os anos 70. Perturbante é que havia já então “bispos – não só nos Estados Unidos – que individualmente rejeitavam totalmente a tradição Católica e procuravam uma nova e moderna ‘catolicidade’ em suas dioceses” (sic). O Papa Emérito chega mesmo a declarar que um dos efeitos adversos da dissolução moral iniciada nos anos 60s do século XX foi que “em vários seminários estabeleceram-se cliques homossexuais, que actuaram mais ou menos às claras e que mudaram significativamente o clima” (sic).
Quanto à “qualidade” da fé vivida pela generalidade dos crentes, seria bom que a hierarquia católica se interrogasse sobre os métodos e conteúdos usados na catequese paroquial e na evangelização em geral, nas últimas dezenas de anos. A infantilização e a ignorância doutrinal de muitas das crianças e jovens é por demais evidente. Veremos (com esperança!) o que nos reserva em Agosto a JMJ em Lisboa.
Bom seria que se prestasse também mais atenção a corrigir a banalização e os abusos nas celebrações litúrgicas, sobretudo da Missa, tão viradas para o protagonismo do padre e para os nossos umbigos, dificultando a participação interior na realidade divina que ali se faz presente. Também a qualidade das homilias devia ser objecto de uma melhor preparação, pois é sobretudo nestas que os cerca de 20% dos católicos que frequentam regularmente a Eucaristia, em Portugal, contactam com a mensagem da Igreja.
Efectivamente, há perguntas que me ocorrem nesta ocasião a respeito da eficácia das iniciativas e programas de evangelização. Que sentido da existência propõem elas realmente? Que inteligibilidade da fé suscitam? Que maturidade humana estimulam? Que testemunho real dão da proposta cristã? Que atractividade provocam? Que convicção geram? Que afectividade interior movem?
É sabido que Lúcia, a vidente de Nossa Senhora de Fátima, relatou que a Mãe de Jesus, na aparição de 13 de Julho de 1917, lhe garantiu o seguinte: “Em Portugal se conservará sempre o dogma da fé […]” (Quarta memória). Mas há que não esquecer o que Jesus, segundo relata o evangelho de São Lucas, se perguntou: “Mas quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a Terra?” (Lc 18, 8). A fé não é garantida pessoalmente até ao fim dos nossos dias neste mundo. Há quem a perca pelos mais diversos motivos e até quem a abjure. Devemos pedir constantemente que nos seja aumentada e purificada e favorecido o seu aprofundamento.
É consolador saber que depois do seu solene envio missionário, garantiu Jesus: “E eis que eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos séculos” (Mt 28, 20). Mas estaremos nós sempre dispostos a estar com Ele? Quanto do nosso tempo Lhe dedicamos? Que intimidade mantemos com Ele?
— Valha-nos Deus! Como tão bem diz o povo. Tal como escreveu aqui Maria João Avillez, também eu rezo e espero poder continuar a dizer nesta hora: “nunca desistirei da Igreja”.
Uma palavra de ânimo e encorajamento é devida à imensa maioria dos padres que é inocente deste pecado e crime (estimada em cerca de 98%; ver abaixo Nota 1). E também aos corajosos jovens seminaristas e aos religiosos de votos professados.
— Não tenham receio ou, ainda pior, vergonha de se identificarem publicamente como tais. Não abdiquem do uso do cabeção e/ou da batina em locais públicos, de qualquer sinal inequívoco de quem sois, aliás em conformidade com o que dispõe a Igreja (ver abaixo Nota 2). Se vos insultarem, não esqueçam que a Ele, que é O Sumo Sacerdote, até lhe cuspiram na cara (cf. Mt 26, 67; Mc 14, 65). Sei que é difícil, cada vez mais difícil com cada novo relatório sobre abusos sexuais. Mas mais do que nunca sois necessários. Sem vós e sem bispos tenderia a desaparecer a Igreja! E sem Igreja, Cristo estaria sacramentalmente ausente e muitos pobres e carenciados de toda a espécie ainda mais pobres e carenciados permaneceriam. Ambos, Cristo e a Igreja, são inseparáveis (ainda que distintos), tal qual como num casal, homem e mulher casados: formam um só corpo.
Que esta ocasião tão dolorosa sirva para uma profunda conversão de todos nós, é o mínimo que se pode exigir, para além, obviamente, da reparação e satisfação de tudo o que é devido no âmbito do direito canónico e civil.
De registar e louvar, foi a indicação do Primeiro-Ministro António Costa de que se deveria voltar a olhar também para a incidência deste fenómeno dos abusos sexuais sobre menores nos demais contextos da sociedade portuguesa. Ter-se-á lembrado do caso da Casa Pia?
Uma última palavra, de esperança e alento, merecem as vítimas, de modo particular os mais novos, brutalmente, abjectamente, ignobilmente e repugnantemente (e mais houvera) feridos na sua inocência e na sua vida afectiva e sexual para todo o sempre. Merecem toda a ajuda e toda a reparação possível e obviamente um pedido de desculpas formal, público e solene da parte de todos os responsáveis eclesiais.
— Sois, nos actos que contra vós perpetraram os abusadores, autênticos mártires, ou seja, testemunhas. Naquilo que vos fizeram e ainda fazem fica testemunhado o mistério do mal, “do homem ímpio, o filho da perdição, o adversário, que se levanta contra tudo que se chama Deus, ou recebe um culto, chegando a sentar-se pessoalmente no templo de Deus, e querendo passar por Deus” (cf. 2 Ts 2, 3-4).
— E Senhores bispos de Portugal, por favor tenham coragem uma vez por todas e façam agora e a partir de agora, ainda que pressionados pelo escândalo, o vosso dever sem qualquer hesitação, falsa prudência ou temor. Convertam-se e convertam-nos pelo exercício dos dons com que a consagração episcopal especificamente vos agraciou: ensinem-nos a doutrina sem transigências com o espírito dos tempos; santifiquem-nos zelando pela digna e decorosa celebração dos sacramentos; sejam nossos pais e pastores “como quem serve” (CD, 16). O povo leigo católico está convosco; pois não pode deixar de estar.
Nota 1 – Segundo informação veiculada em 2014 pelo próprio Papa Francisco, estima-se em 2% a prevalência de sacerdotes pedófilos. Ver, por exemplo: How many men are paedophiles? – BBC News ; e também: One in 50 priests is a paedophile: Pope Francis says child abuse is ‘leprosy’ infecting the Catholic Church | Daily Mail Online
Nota 2 – cf. nº 61 do Directório Para o Ministério e a Vida dos Presbíteros, nova edição, 2013: Diretório para o Ministério e a Vida dos Presbíteros, Edição 2013 (vatican.va)