Brincar é um perigo! Porque torna as crianças amáveis e hospitaleiras. E as põe a congeminar. E as leva a apanhar as ideias no ar, e a costurá-las como se, uma a uma, fossem tesouros inadiáveis. E é um perigo, ainda, porque as convida a não dar importância às coisas aborrecidas — como os números à frente de todos as palavras ou o sério emaranhado no sisudo — como fazem os adultos, que de crianças que borbulhavam no entusiasmo se foram transformando, aos bocadinhos, em pessoas (desconsoladas) que não brincam.

Brincar é um perigo! Porque convida as crianças a ser descontraídas. Capazes de se escangalharem… a rir. E as leva a fantasiar e a sentir. Ou – muito perigoso, mesmo! – a acreditar em contos de fadas e em “Faz de conta”. E a fazer de todos os “Agora, eu era” coisas sérias e urgentes.

Brincar é um perigo! Porque tira as crianças das redomas em que os pais as imaginam protegidas. Mesmo que elas se sintam aperreadas. Um bocadinho sem ar. E – até, mesmo – quiçá, aprisionadas. E é um perigo maior, ainda, porque, depois, sempre que brincam, as crianças se sujam. E, mal se dá por isso, depressa se aleijam. E, se for preciso, logo se zangam. E, mesmo, se enxofram e andam à bulha. E tudo isso, perigosamente, leva a que fiquem com as suas cabeças mais… no ar. E que se tornem mais criativas. Mais capazes de resolver problemas. Mais capazes de comunicar e de ser afirmativas. Ao contrário daquilo que as crianças quietinhas e certinhas são capazes de fazer. Quando fogem de agarrar o mundo com os seus olhos e de o namorar e amarrotar com o desassossego de quem se sente empoderado para o desmanchar e reerguer.

Brincar é um perigo! Porque isso capacita as crianças para a surpresa. E para o espanto. Porque as co-move. As mistura umas com as outras. E as põe a sofrer de “bicho carpinteiro”. Ou as leva a ter a vista na ponta dos dedos. E língua de perguntador! E, transbordando em desassossego, as desafia a perguntar, mesmo depois de entrarem na escola, “Porquê?” e “Falta muito?”, um ror de vezes. E isso torna-as conquistadoras. E ousadas. E faz com que errem até que, umas com as outras, consigam descobrir naquilo em que tropeçam as ferramentas com que se aprende a prosseguir. E – perigo dos perigos – faz com que tudo isso as torne um bocadinho mais aventureiras. Em vez de atiladas e ajuizadas. Compenetradas, “crescidas” ou caladas.

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Brincar é um perigo. Porque, quando brincam, as crianças se deixam tomar pela sensibilidade e pela alegria. E isso tolda-as. E torna-as tão perigosamente vulneráveis que não distinguem os jogos didácticos do “faz de conta”. Os jogos de estratégia do brincar “às mães e aos filhos”. O saltar do dramatizar. Ou uma história ou um livro, dos “sérios”, do esconde-esconde. E leva-as – perigosamente… – a valorizar tudo aquilo em que elas mexem. Uma caixa de cartão. Um par de dedos. Uma sombra. Ou uma vozinha esconjurada. Como se tudo se moldasse. Tudo as trabalhasse. E qualquer pequeno-nada as levasse, de supetão, ao seu voar. Mesmo quando estão muito caladas e isso as povoa de avenidas tão tamanhas dentro delas que, se for preciso, faz com que nunca mais se cansem de crescer.

Brincar é, finalmente, um perigo. Porque enquanto brincam as crianças não estudam. Nem andam, rua acima rua abaixo, entre aulas, explicações e (muitas!) actividades da família da escola. Mas, muito pior que tudo, sempre que brincam, as crianças ficam mais vivas. Mais ligadas entre aquilo que sentem e o seu corpo. Mais criativas. Mais mexidas. Mais atentas. Mais concentradas. Mais expansivas. Mais amigas da palavra. Menos egocêntricas. Mais tranquilas. Mais inteligentes! E… mais risonhas. E até parece que isso faz da sua infância um duende que se transforma num génio. Ou um pedaço de amanhã que chega, disfarçado, a qualquer momento, a um hoje qualquer em que elas toquem.

Por isso, vamo-nos deixar de perigos e toca a devolver a infância a todas as crianças. E reconhecer que o brincar é “só!” o melhor amigo da saúde mental. E vamos lá a ter a coragem de reconhecer que, aos olhos dos adultos, brincar parece ter-se tornado um perigo; sim. E que talvez seja por isso que, todos os anos, as crianças brinquem cada vez menos horas por semana. E o façam mais sedentárias, mais fechadas e mais sozinhas. Ou que brinquem quietas e caladas. Com a ponta dos dedos mas contra o corpo. E sem alma. Longe da liberdade e da felicidade do brincar da infância dos seus pais. Longe da rua. Da presença dos outros. E do seu brincar.

Aos olhos dos adultos, brincar tornou-se um perigo. Doutra forma porque é que eles deixariam que as crianças, não brincando, transformassem a liberdade de quem brinca enquanto aprende numa espécie de trabalho infantil, como a escola, muitas vezes, se está a tornar? E deixassem que elas vivam agarradas a ecrãs e a videojogos, por mais que isso as torne desatentas e irritadiças; impulsivas e agressivas; solitárias e irascíveis?

Por tudo isto, é urgente reconhecer que brincar é muito mais importante do que estudar. Para os adultos, só o aprender que a escola lhes traz torna as crianças prósperas e grandes. Para as crianças, a grandeza de carácter ou a grandeza da sabedoria, se bem que cresçam com aquilo que se aprende, necessita, sobretudo, do brincar. E se isso as leva a errar, a falhar, a ganhar ou a perder, a rir ou a chorar, a ter medo ou a dizer: “Não me apetece!”, “Não sei!” ou, simplesmente, “Não quero!” ou “Acabou-se!“, não as leva – nunca! – a que se fiquem pelo que sabem. Mas, indo mais além, faz com que descubram o que podem fazer com aquilo que descobriram. E – mais longe, ainda – que brinquem com tudo o que elas aprenderam. Porque se o brincar faz com que da sabedoria se chegue à alegria, só o brincar com aquilo que se sabe as faz crescer.

Por isso, é inadiável, é superlativo e é urgente que as crianças brinquem. Muito! Todos os dias! Porque para que uma criança deixe de ser criança basta que – em silêncio ou devagarinho; por si, sem querer, ou com a nossa distracção – se desencontre da sua infância. Mas para que seja capaz do rir, como só os mais sérios são capazes de ser; para que seja capaz do fantasiar e do sentir, e de agarrar o mundo com os olhos e de o amarrotar; e para que seja capaz do entusiasmo e da alegria, e do amanhã num hoje qualquer, não chega que não se desencontre da sua infância. Precisa que a deixemos – sempre! – ir ao encontro do brincar.

Por isso, por tudo isso, devolvam as crianças à infância. Deixem as crianças brincar!