O Programa Eleitoral do Partido Socialista tem, como era esperado, um capítulo dedicado à saúde. Relativamente à proposta colocada em discussão pública, o documento final tem algumas diferenças, mais de detalhe do que em elementos essenciais. A consulta pública não resultou, pois, em sugestões importantes ou que tenham sido acolhidas.

As propostas apresentadas procuram exaustividade, cobrindo diversas áreas. Como tal, em várias situações são dadas indicações de que rumos poderão ser prosseguidos mas com detalhe insuficiente para se conseguir discernir qual o seu verdadeiro alcance e potencial efeito.

Na impossibilidade de cobrir todas as ideias apresentadas, tomemos cinco das principais propostas. A primeira é a integração das “prestações de saúde com as da segurança social”. A justificação dada é uma maior coordenação no apoio à população idosa. Compreende-se a justificação. Contudo, a segurança social abarca muitas intervenções além da associada com esse apoio. Se a ideia é juntar num organismo comum apenas e unicamente esse apoio, canalizando verbas quer do Ministério da Segurança Social (ou como se venha a chamar num eventual Governo do PS) quer do Ministério da Saúde, mantendo as restantes intervenções das respectivas áreas separadas, poderá haver alguma vantagem. O objectivo é vencer descoordenação que exista. A solução seria assim proporcionada.

Mas se o objectivo for juntar os dois ministérios num só, a “solução” provavelmente falhará, mesmo que as situações relacionadas com o emprego sejam colocadas noutro ministério, separadas das prestações sociais. Os tempos de decisão de cada uma das áreas são diferentes. No campo da saúde há sempre uma premência maior na garantia da assistência à população, enquanto na Segurança Social a definição do sistema de pensões e o seu financiamento apelam a um pensamento de longo prazo. Não é que na saúde não se tenha que pensar no longo prazo (é o que implica prevenção da doença e promoção da saúde), mas o mais imediato acaba por captar a atenção de quem decide. Claro que na segurança social, nomeadamente nas pensões, se pensa também como as pagar hoje e amanhã, e há as prestações sociais de combate à exclusão e à pobreza que têm igualmente natureza mais imediata. Mas a atenção na segurança social, pensões em particular, está nas regras de longo prazo. Querer juntar decisões que exigem tempos de decisão e tempos de reflexão tão diferentes num só ministério tem tudo para não funcionar.

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A este argumento junta-se a recente experiência de superministérios da presente legislatura, que tiveram o resultado final conhecido de separação a meio do percurso. Curiosamente, esta proposta, com alguma importância, é mencionada apenas na introdução do capítulo. Não há a sua exploração ou fornecimento de mais detalhes posteriormente.

Uma segunda proposta, de âmbito genérico e estratégico, surge numa secção que destaca “uma nova ambição para a Saúde Pública” e consiste na estratégia “saúde em todas as políticas”. Esta ideia foi formalmente defendida pela presidência finlandesa da União Europeia há dez anos, e está também presente do recente Relatório Gulbenkian sobre a Saúde (“Um futuro para a Saúde – Todos temos um papel a desempenhar”). É uma estratégia que se baseia na intervenção de múltiplos sectores de atuação pública para promoção da saúde, e não apenas tratar doentes. Assim especificado, é demasiado vago, mas será difícil concretizar qual a abordagem concreta, pois dependerá também da colaboração de outros ministérios (que terão deixar de ver o Ministério da Saúde apenas como um concorrente por recursos financeiros do sector público).

A terceira proposta, ou conjunto de propostas, gira à volta de “reforçar o poder do cidadão no SNS”. É traduzida num primeiro princípio, o de liberdade de escolha (ainda que com a salvaguarda de “respeito pela hierarquia técnica e pelas regras de referenciação do SNS”). Embora seja fácil defender este princípio, nem sempre é claro quais as consequências dessa defesa em termos de políticas. Pode-se pretender ter liberdade de escolha dentro de um quadro em que há forte regulação das entidades do SNS que prestam os cuidados de saúde, ou usar essa liberdade de escolha como forma de motivar uma melhor prestação de cuidados de saúde. Mas nesse caso, o que se está a dizer é que se pretende ter concorrência dentro do sector público, caso em que será necessário perceber em que factores as diferentes unidades “concorrem” para serem escolhidas e quais as consequências de não serem selecionadas. Será possível ter “falências”? ou a liberdade de escolha resulta no final em premiar quem pior gere (tendo menos trabalho e/ou reclamando mais recursos)? Liberdade de escolha não é equivalente a concorrência. E concorrência necessita de ser enquadrada num conjunto de condições para que possa produzir resultados socialmente favoráveis.

Por outro lado, “reforçar o poder do cidadão” poderá também ser no sentido de uma maior capacidade de decisão do cidadão, como verdadeiro parceiro no processo de definição dos cuidados de saúde. É um papel diferente do mero exercício de uma liberdade de escolha de prestador de cuidados de saúde. Exige uma mudança da forma como os profissionais de saúde, nomeadamente os médicos, se relacionam com os doentes.

A quarta proposta que merece referência é a expansão dos cuidados de saúde primários, em particular com a instalação de meios auxiliares de diagnóstico e de terapêutica. O recurso à urgência hospitalar tem sido um tradicional factor de disfuncionalidade no SNS, pois existe disponibilidade a todas as horas e todos os dias e oferece a conveniência de ter no mesmo local a possibilidade de atendimento e da realização dos exames que sejam necessários. Sendo uma intervenção que faz sentido, será necessário depois tratar das decisões que evitem duplicações desnecessárias. Curiosamente, em todo o documento não há menção a outras formas de resposta dos cuidados de saúde primários, como a figura do enfermeiro de família e a linha Saúde24.

Por fim,  a quinta proposta a referenciar é o papel dos cuidadores informais. É um aspecto pouco conhecido e pouco desenvolvido em Portugal, mas que se antecipa venha a ter um lugar relevante no futuro dos sistema de saúde.

Globalmente, o programa do PS toca em muitos aspectos da prestação de cuidados de saúde, e de uma forma geral com propostas que merecem ser discutidas. Nota-se a ausência de uma ideia clara sobre as fontes de fundos para o SNS, havendo como única referência os elevados pagamentos diretos das famílias, que se pretende que diminuam. Como grande parte desses pagamentos estão associados com a utilização de medicamentos, fica no ar a possibilidade de uma alteração das comparticipações do Estado, geral a toda a população, ou então programas de apoio social à compra de medicamentos, com verificação da necessidade de apoio. O que traria de novo a questão de integração de diferentes políticas sociais, combate à pobreza e política de saúde neste caso. Ficou, também aqui, a faltar o detalhe necessário para uma apreciação mais completa.

A transformação de muitas das ideias presentes no programa apresentado em medidas concretas irá exigir um trabalho suplementar de detalhe, incluindo as suas implicações em termos de necessidades de recursos e de mudança de sistemas de financiamento das entidades que fazem parte do Serviço Nacional de Saúde, e frequentemente boas ideias perdem-se numa má concretização. Está, de qualquer forma, lançado um conjunto de ideias para discussão.