Esta segunda-feira, dia 19 de Junho, teve início mais uma semana do Festival Cannes Lions. Muitas vezes perguntam-me o que é o Festival Cannes Lions e penso sempre que a melhor explicação talvez seja dizer que está para a indústria de media, marketing e criatividade como os Óscares estão para a indústria cinematográfica.

Mas, ao contrário dos Óscares, o Cannes Lions é hoje mais do que uma competição da melhor criatividade mundial. Tem essencialmente três grandes tópicos: a competição, com a avaliação dos principais trabalhos criativos de agências de todo o mundo e a atribuição de prémios aos melhores;  a formação, com as principais marcas e speakers de todo mundo a reunirem-se em seminários, talks e workshops, onde salientam as principais tendências e realidades do sector – e, finalmente, a promoção do talento do futuro, com as competições dos Young Lions que permitem que os jovem talentos que ganharam as competições nacionais de cada um dos seus países, possam vir a Cannes para uma grande final mundial.

O Cannes Lions é, também por tudo isto, o principal momento anual de toda a indústria de media, marketing e criatividade – onde se incluem obviamente os próprios media, os anunciantes, mas principalmente todos as empresas que estão “no meio”, que atuam e “criam” para que as marcas consigam chegar aos consumidores.

É uma semana em que a indústria faz uma espécie de catarse sobre a importância da criatividade na comunicação, mas também sobre as grandes oportunidades e as principais ameaças ao sector.

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Portugal, na sua dimensão relativa, tem um track record bastante interessante na competição: nos Young Lions Portugal é um dos países mais premiados.

Não quero ainda “especular” sobre os grandes temas que vão ser discutidos ao longo desta semana – sendo que o tema, hoje omnipresente em qualquer assunto, da Inteligência Artificial (IA) e do ChatGPT, será certamente um dos principais – mas sim avaliar como o Festival mostra, em cada ano, de forma clara, quais as tendências de toda a indústria, quem são as marcas e as empresas que estão a “dominar” o setor – e, por omissão, quem não está.

A indústria e as suas empresas valorizam de tal forma o Cannes Lions que a forma como investem na presença no Festival acaba por refletir de forma clara “quem” está “na mó de cima”.

Ora vejamos, o festival existe há 70 anos. Criado por Roger Hatchuel em 1954 para premiar os melhores filmes publicitários do ano, ilustrava a enorme importância que a Televisão e o Cinema tinham na indústria. O primeiro ano teve 130 delegados com 187 inscrições de 14 países – em 2022 vieram cerca de 15000 delegados e 25464 inscrições de 87 países.

Depois, ano após ano, o festival foi juntando categorias relativas aos outros media – rádio, imprensa, outdoor, etc. – e um pouco mais tarde, criou novas categorias que traduziam o desenvolvimento das agências especializadas, como o design, as relações públicas e outras. Pelo facto de o tema principal do festival ser o de premiar a criatividade, as principais marcas que sempre “dominaram” não foram os principais media – televisão, rádio, imprensa e outros – onde os anúncios passavam, mas sim toda a indústria que criava e produzia os anúncios que iam parar a esses mesmos meios.

Assim, os primeiros 50 anos foram totalmente dominados pelos grandes grupos de media, marketing e criatividade que controlavam essas agências: WPP, IPG, Omnicom, Publicis e, mais tarde, Havas e Dentsu, entre alguns outros. Eram os grupos “donos” de todas as empresas e agências que, contratadas pelos anunciantes, procuravam criar os melhores anúncios para ajudar essas marcas a diferenciarem-se das concorrentes.

Durante este primeiro meio século, a “presença” no Festival acompanhou o desenvolvimento destas empresas. Começou por ser dominado durante as primeiras décadas pelas agências criativas – Young & Rubican, Mccann, Ogilvy, Saatchi, entre outras – a que depois se juntaram as agências de meios, como a Mindshare, a Carat e a Universal Media – e depois gradualmente foi reunindo empresas de Design, Relações Públicas, com o aumento da relevância destas novas competências do marketing. Embora fossem surgindo cada vez mais marcas e agências em Cannes, os grupos a quem todas elas pertenciam eram os mesmos: WPP, IPG, Omnicom, Publicis, entre alguns dos principais.

Porém tudo começou a mudar, a partir de 2011, com a chegada do Google em força a Cannes, criando a Google Beach, que ainda hoje existe. Gradualmente, ano após ano, com a “revolução digital” a transformar estruturalmente a indústria, os tais grandes grupos e agências de que falámos foram “perdendo” espaço para os novos grupos “digitais”.

As principais praias da Croisette, anteriormente dominadas pelas agências dos grandes grupos “tradicionais”, foram sendo conquistadas pelas empresas nascidas da revolução tecnológica.

Durante um par de anos, o grande “conquistador” foi o Google – para além do já pouco relevante Yahoo, que chegou a ter grande presença – mas rapidamente foi acompanhado depois pelo Facebook, hoje Meta, o Pinterest, o Instagram e mais recentemente plataformas como o Netflix, o TikTok, o Spotify e a Amazon.

Neste contexto, também tivemos o ano em que as grandes empresas de consultoria, como a Deloitte e a Accenture, apareceram em grande em Cannes, sugerindo que poderiam estar para realizar um buyout aos grandes grupos de media, marketing e criatividade, aproveitando as suas baixas capitalizações bolsistas da altura. Na verdade, esse movimento acabou por não acontecer, com excepção da compra da agência independente Droga 5 pela Accenture.

Curiosamente, os últimos anos mostram alguma resiliência dos grupos “tradicionais” – WPP, IPG, Omnicom, Publicis, etc. – ao conseguirem recuperar bastante bem da pandemia e “aproveitando” alguma reação negativa em relação às tecnológicas. No fundo, isto demonstra que apesar de a tecnologia ser cada vez mais relevante, são as ideias e a criatividade que, no final do dia, fazem a grande diferença. E estas continuam a vir das agências dos grupos WPP, IPG, Omnicom e Publicis, entre outros.

Não há criatividade sem tecnologia, mas a tecnologia sem criatividade também se torna irrelevante.

Posto isto, veja-se que, no ano passado, as maiores tecnológicas – Google, Meta e Amazon, mais as “chinesas” Alibaba, Bytedance (dona do TikTok) e Tencent – representaram cerca de 65% das receitas globais de publicidade. Não esquecer que, há 20 anos atrás, estas empresas quase não existiam: nessa altura, 75% do valor global investido em publicidade passava pelo grupos tradicionais.

Cá estarei para perceber onde vai o mercado. Apesar de não ter muitas dúvidas sobre para onde está a tendência, fico sempre curioso para ver se vou ser surpreendido. Será que ainda vou ver uma praia da Microsoft, com a Open AI, ou do Google com a Bard, o “ChatGPT” deles? Tudo é possível.