A primeira coisa em que pensei depois de ter aceite o convite para estar aqui foi numa frase do Poeta que todos conhecemos: «Liberdade é ter um livro para ler e não o fazer.» Imaginei o esforço, o tédio, a dúvida, a náusea e o cansaço dos jurados dos concursos literários, comprometidos com a tarefa de durante semanas a fio lerem e julgarem dezenas de «obras» na expectativa e na esperança de encontrarem enfim aquela que os recompense de tudo aquilo e seja merecedora da distinção a que se propõe.
A tarefa é em si mesma arriscada e sujeita a erros de apreciação, pelo modo de atacado em que a leitura crítica ocorre, e além disso, ser jurado literário não é nem pode ser um encargo de prestígio e dignidade em Portugal, país pequeno e dado à inveja e à intriga tanto quanto ao favorecimento e à troca de favores e galhardetes à vista de todos — e mais ainda, um país em que os valores literários não podem ascender a patamares notáveis pela simples razão de que sem hábitos de leitura precoces e qualificados é a própria criação literária que não tem uma base sólida e alargada para visar a maturidade indispensável e conveniente à sua consagração. Sem intensa leitura não há grande escritura, tal como sem rodas não se constroem bicicletas.
Por outro lado, a própria chusma de prémios banalizou a função: telefónicas, supermercados, casinos, autarquias, fundações, festivais literários, bancos, clubes privados com dinheiros públicos, academias — enfim, um dia, quem sabe, até a Funerária Triunfo com um prémio para a literatura gótica — todos se dispõem a recompensar com cheques, aliás modestos, as ambições literárias das patuscas e dos patuscos que se apresentem a concurso. Como se não bastasse, aos júris desses prémios ainda comparecem delegados de instituições que julgávamos há muito extintas ou já definitivamente desacreditadas, como a Associação Portuguesa de Escritores e o PEN Clube português, verdadeiros baluartes políticos mantidos à tona por militâncias de velha guarda que nunca desistem, e que são investidos de uma autoridade de juízo que ninguém de bom senso lhes poderia atribuir, pela simples razão de que Literatura não é Política. E claro, a universidade também participa, para nos lembrar de como ela é capaz de destruir o prazer de ler e de compreender os livros.
Não digo — obviamente — que aos concursos literários não se apresentam obras de mérito, que podemos ler com gosto e guardar delas uma boa impressão por largo tempo. Mas é preciso afirmar claramente que a grande literatura (aquela que mais interessa) avança milimetricamente, e que a boa literatura dá no máximo um, dois, três, cinco livros em anos de boa safra. Tudo o resto existe mas não persiste. Sem a consciência de que é assim, sem a defesa da Literatura como grande Arte e não como entretenimento ou veleidade, cedemos demasiado ao circo mediático, à manipulação comercial e à propaganda livreira. Não vale a pena premiar realizações medianas ou medíocres, mais uma vez e repetidamente, para acabarmos diante da evidência cruel de que, no fundo, a nossa vida literária não é lá grande coisa. Valores literários de excepção são uma improbabilidade e o seu reconhecimento pode ser, costuma ser tardio ou póstumo (o próprio Pessoa serve de exemplo).
Deixemos então — conservadoramente — que o tempo atribua o valor das coisas.
A única vantagem dos prémios literários e provavelmente a sua única razão de ser é o pequeno dinheiro oferecido a escritores, cuja profissionalização se torna impossível ou dificílima em países onde as tiragens dos livros são mínimas (um exemplar para cada 50 ou 100 000 habitantes!) e em que o © é de escandalosos 8 % pagos ao fim dum ano, embora as vendas se processem mensalmente… O dinheiro, como as boas notícias, é sempre bemvindo, ninguém tem dúvidas quanto a isso.
Benesses colaterais podem surgir, tipo bolsas, residências literárias e festivais pelas províncias ou no estrangeiro, mas estas só valem para quem se presta a essa especial forma de turismo. De resto, o anúncio de um prémio literário numas linhas de jornal ou num rodapé de televisão não dá a ninguém garantias automáticas de sucesso comercial. Bilhetes de Colares, de A. B. Kotter (José Cutileiro), de um invulgar virtuosismo literário e linguístico, recebeu um grande prémio da crónica, mas ficou-se por um completo fracasso de vendas. E no entanto, acreditem, este livro tem tudo, mas tudo para ingressar no nosso cânone literário.
Que é o cânone literário?
O cânone literário é uma figura muito bem apessoada, distinta e bem-falante, que teve abundante convivência íntima com as Musas e que no tempo antigo se prestava a encontros voluptuosos em lugares públicos chamados bibliotecas, livrarias e escolas, onde por vezes ele aparecia gravado na pedra das portarias ou em medalhões esculpidos nas estantes. Mas isso foi no fim do século xix! Hoje em dia, o cânone literário já não é o que era, por força de muitos factores, entre os quais a sua própria natureza, que o obriga a recriar-se perpetuamente. Para que isso ocorra certas condições são indispensáveis, como a revisitação contínua, o confronto crítico e as reimpressões postas à disposição dos vindouros, com novas e mais completas abordagens.
E não tem sido fácil. Não apreciamos Camões do mesmo modo que não bebemos vinho do Porto, e não temos pelos clássicos o respeito e a curiosidade que o saudoso Vasco Graça Moura nunca se cansou de demonstrar e sugerir — e ele sabia muito bem porquê. Por incrível que pareça, políticas de ensino e de leitura têm contribuído para o progressivo apagamento da memória literária ancestral, excluindo clássicos e privilegiando o contacto directo dos jovens estudantes com escritores vivos cujo lugar no panorama das Letras evitarei comentar. Para não ir longe no tempo, autores prestigiados há cem, cinquenta, trinta anos são já quase uns ilustres desconhecidos, que só a caturrice duns poucos se propõe contrariar. Com excepções, as livrarias tornaram-se vitrines de novidades efémeras, sem um fundo canónico atento a edições de reconhecido valor, e as bibliotecas públicas, enfraquecidas por desinvestimento e pela pasmaceira do funcionalismo, demitiram-se dessa mesma salvaguarda. Mas sobretudo — e aqui fala o editor e pesquisador — assistimos ao estrondoso colapso do paradigma editorial vigente, que há décadas vira costas ao cânone literário e à permanência consolidada e renovada dos autores canónicos em posição de destaque nos seus catálogos de livros.
Boas restituições e reparações vão sendo feitas aqui e ali (vejam-se os trabalhos de José Carlos Seabra Pereira, António Cândido Franco, Joana Morais Varela, Jorge Fazenda Lourenço, Manuel Vieira da Cruz, entre outros), mas surgem dum modo tão desgarrado e discreto que não chegam para criar um volte-face cultural. Há tanto por fazer na fixação textual e na recolha de dispersos de grandes escritores canónicos, que a edição crítica da obra de Fernando Pessoa, levada a cabo por uma pléiade de filólogos e editors, nos deve servir de estímulo e guia para essa campanha indispensável de salvaguarda e desfrute do nosso património literário de todos os tempos. Com as enormes dificuldades inerentes à complexidade dos papéis éditos e inéditos do autor do Livro do Dessassossego, ou seja: um imbróglio de todo o tamanho, eles vieram provar que os esforços de requalificação e reedição da obra de um grande escritor, obviamente canónico, são recompensados pela adesão aos seus escritos, doravante disponíveis à leitura por gerações e gerações adiante. Algo de extraordinário foi feito também com a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (velhíssima de quatrocentos anos, agora celebrados): uma equipa de especialistas internacionais trabalhou durante anos na fixação do texto e na contextualização histórica e geográfica desse livro ímpar na literatura mundial, depurando-o de lapsos e anotando-o com o mais actual conhecimento em estudos asiáticos. A tiragem de apenas 500 exemplares é que denuncia o deplorável estado de indiferença ou decadência em que nos encontramos.
Mais do que prémios literários, os bons ou excelentes livros que vão surgindo precisam, afinal, da manutenção e vivificação do cânone literário como a grande referência de leitura, para que daqui a décadas ou séculos também esses bons ou excelentes livros dele façam parte, como expressão maior do nosso tempo.
Vasco Rosa organizou e publicou recentemente o livro com textos dispersos de Raul Brandão, “A Pedra Ainda Espera Dar Flor“ (Quetzal Editores). Texto lido na sessão «O cânone literário na era da multiplicação dos prémios» do Festival do Desassossego 2014, na Casa Fernando Pessoa, de Lisboa