Carl Schmitt, o renovador da “teologia política”, o grande teorizador do estado de excepção, o espectador interessado e interveniente dos anos de chumbo e de fogo da Alemanha do século XX, parece ter ressurgido em força para animar a reflexão e legitimar a acção política, de Oriente a Ocidente.
A Oriente, o interesse por Schmitt manifesta-se no número de traduções, de estudos e comentários, de juristas e politólogos chineses de que a sua obra tem vindo a ser alvo nos últimos vinte anos; a Ocidente, evidenciam-no a recente publicação da monumental tese de David Cumin, La pensée de Carl Schmitt (1888-1985), e do livro de Bernard Bourdin, Théologie et politique: la controverse Eric Peterson, Carl Schmitt.
Jurista de formação católica conservadora, Schmitt viveu os anos de Weimar, os anos da derrota, da humilhação e da radicalização galopante da política alemã, observando, intervindo, mas, sobretudo, teorizando soluções e expedientes autoritários para “a crise do liberalismo”. O tempo era determinado pelo triunfo comunista na Rússia e a ameaça que fazia pesar sobre a Europa e parte das Américas, e muitas das soluções iliberais que então emergiam, como o fascismo italiano, decorriam também de um confronto com o regime e a sociedade mais iliberais de sempre.
Schmitt é um dos grandes pensadores políticos da modernidade, um intelectual que, como Maquiavel cinco séculos antes, viu de muito perto a realidade da política, da açção política e do poder político – no bem e no mal, mas sobretudo no mal.
Nascido em 1888 numa família numerosa, modesta e católica, em Plettenberg, na Vestfália, região que fora incorporada na Prússia em 1815, Schmitt não vai seguir as pisadas do pai, militante do Zentrum, o partido católico. Quando vem a Guerra, voluntaria-se para a infantaria, mas uma lesão na coluna durante a instrução torna-o inapto para o serviço operacional, pelo que faz a guerra na secretaria.
Depois da Grande Guerra e durante Weimar, dedica-se ao estudo da tradição filosófico-política do Ocidente; não à descrição e à enumeração aristotélica das virtudes do bom governo e da boa ordem ao longo dos tempos, mas ao estudo dos períodos de crise, dos tempos de excepção, em que as filosofias fundadas no optimismo antropológico não são solução, e em que a História é, sobretudo, caos e violência.
Krisis e decisão
Krisis, nos pensadores gregos, tinha o sentido de situação que provocava uma decisão limite, radical. Em Aristóteles, na Política, aparecia como a solução de um litígio através da decisão e da emissão de um veredicto; no chamado Corpus Hippocraticum, um conjunto de tratados de Medicina,Krisis indicava o momento em que se avaliava se os poderes curativos do organismo eram suficientes para a cura; e no teatro clássico marcava o tempo da confrontação do protagonista com as forças do Destino. Já para os primitivos cristãos, Krisis era o derradeiro juízo divino no Juízo Final. E se a teoria política clássica incorporava imagens inspiradas na vida humana e no corpo humano, a comunidade política era vista pelos autores medievais como uma encarnação do Corpo Místico de Cristo; por isso era natural que os ciclos da vida e da morte, da saúde e da doença se tivessem estabelecido como metáforas sedutoras e duradoras da vida pública.
Para um pessimista antropológico citado por Schmitt, como Thomas Hobbes, o tempo da conflitualidade antecipada da monarquia inglesa, até se estabilizar com a Gloriosa Revolução, foi um quadro excepcional de observação de enfermidades sem autorregeneração à vista, de situações pré-caóticas, carentes de medidas de excepção. E quer os utópicos da Idade das Luzes, quer os primeiros observadores da Revolução Industrial, como Karl Marx, olhavam a estabilidade social como uma condição precária condenada à crise, até ao cataclismo final, o apocalipse que antecederia a nova aurora.
Contemporâneo da derrota de 1918, da humilhação do Reich bismarckiano e da guerra civil de baixa intensidade dos primeiros anos do Weimar, Schmitt foi um pensador realista e pessimista da crise e dos remédios para a crise. Os seus conceitos de “estado de excepção”, de “ditadura” e de “decisão” constituem um corpus de pensamento que, em última análise, pretende jurisdicizar as condutas iliberais a que as crises obrigam, enquadrando institucionalmente o tempo e a aplicação da excepção.
O percurso de Schmitt decorre da sua formação nacionalista e católica, e do seu cepticismo em relação à democracia liberal, como solução numa idade de incertezas radicais. O conhecimento profundo que tem da História e o seu modo de a olhar de frente levam-no a perceber que há uma mecânica cíclica nas crises, e que, das grandes crises, resultam, geralmente, novas soluções e novos tempos.
O remédio encontrado para as crises que estuda e que observa é a suspensão do Estado de Direito e da “normalidade constitucional”, mas uma excepção regulamentada. Para Schmitt, o modelo romano da “ditadura comissarial” era uma forma e uma fórmula de preservar a comunidade e evitar o caos e a guerra civil; uma instituição que os romanos, realistas e prudentes, tinham criado para as situações de excepção – revoltas, guerras, catástrofes naturais –, com um tempo limitado (6 meses) e a obrigação por parte do “ditador” de prestar contas ao Senado no final da “comissão”. Assim resolvia-se a crise e limitava-se o arbítrio.
Se pensarmos na Europa dos anos 20 do século passado, depois do triunfo da revolução bolchevique e da resposta fascista de Outubro de 1922, percebemos a preocupação generalizada com a “crise do parlamentarismo”. Schmitt escreve A Ditadura em 1921 e a Teologia Política em 1922, quando quer rebater a crença liberal de que o caso excepcional encontra sempre solução no direito constitucional comum. Não tem também ilusões quanto ao valor real, no Estado contemporâneo, de conceitos éticos kantianos, manipulados como imperativos indiscutíveis. Consequentemente, também não o impressiona a incorporação desses conceitos num normativismo à Kelsen. Por isso, fundamenta-se em contra-revolucionários, como Joseph de Maistre e Donoso Cortés, inimigos do racionalismo das Luzes, para contestar as pretensões da ordem jurídica liberal de evitar o caos e a guerra civil sem recorrer a mecanismos excepcionais ou de outra ordem, fora do direito positivo.
Perante Weimar
Para Schmitt, a instabilidade crónica da constituição de Weimar era consequência da derrota de Novembro de 1918 e da imposição de Versalhes. Uma imposição dos eternos inimigos da Alemanha – a França revanchista de 1870-71 e a Inglaterra invejosa do progresso económico-social da Alemanha de Bismarck –, a que se juntavam a coacção moralizante americana e o perigo bolchevique da Rússia. Weimar era, para Schmitt, o apogeu do liberalismo burguês e decadente.
Perante a radicalização de nacionais-socialistas, comunistas e socialistas, Schmitt terá tentado influenciar os militares e os círculos nacionais-conservadores para que convencessem o Presidente Hindemburgo a recorrer à ditadura comissarial, usando o Artigo 48º da Constituição proibindo, com o apoio do Exército, os nazis e os comunistas e governando por decreto presidencial. Era o estado de excepção, exigido pelo salus populi para evitar o caos e a guerra civil.
O seu conselho não foi seguido. Em Julho de 1932 os nazis do NSDAP tiveram 37,3% dos votos e os comunistas do KPD 14%, o que significava uma maioria e anti-parlamentar no Parlamento. As eleições de Novembro mostraram um ligeiro recuo dos nazis para 33% e uma ligeira subida dos comunistas para 17%, mas a maioria anti-parlamentar persistia.
Afastada, à partida, a ditadura comissarial (que, de resto, não teria grandes condições para ser ali ensaiada), optou-se por uma solução no quadro parlamentar liberal: o líder do DNVP (Deutschnationale Volkspartei), Alfred Hugenberg, o industrial e tycoon dos média que chefiava os conservadores, juntou-se a Papen para apoiar Hitler, que assumiu o cargo de Chanceler em 30 de Janeiro de 1933. E todos os partidos conservadores, incluindo o Zentrum católico, acabaram por votar, pouco depois, o acto institucional que concederia poderes ditatoriais ao Führer.
Assim, por via parlamentar, instalava-se uma ditadura pessoal e popular, não comissarial. Schmitt – como o próprio Heidegger e a fina flor da Academia e da sociedade alemã em geral – aderiu ao regime. E, a seguir à Noite das Facas Longas, (30 de Junho para 1 de Julho de 1934) em que Hitler disciplinou violentamente as S.A., liquidando também uma série de inimigos à direita, Schmitt escreveria a famosa justificação “Der Führer schützt das Recht”, que publicou em 1 de Agosto no Deutschen Juristen-Zeitung , (“O Führer protege o Direito”), justificação que iria inscrevê-lo como cúmplice qualificado do poder hitleriano e contribuir para a sua fama de “jurista da Coroa” do Nacional Socialismo. E no entanto, como nacional-conservador, Schmitt quisera travar nazis e comunistas com o expediente da “ditadura comissarial” e era avesso às teses Völkisch e ao populismo democrático da Volksgemeinschaft, com o Führer como mediador – sendo, por isso, muito criticado nos círculos radicais do partido e do regime.
Num mundo como o de hoje, em que não há alternativas teóricas à Democracia, não admira que os chineses, no seu modelo de “democracia iliberal de partido único”, vão buscar inspiração e até legitimação às teorias schmittianas do estado de excepção; ou que o venham a fazer democracias nacionais plebiscitárias, como a russa e a turca. E nas próprias democracias parlamentares europeias as medidas de resposta à pandemia configuram modelos próximos do estado de excepção. Tudo isto – e a cíclica radicalização ideológica que, com importantes diferenças, repete agora a de há cem anos – é razão de sobra para que se volte a ler Schmitt.