Há em Cícero um curioso hápax – palavra ou expressão que ocorre apenas uma vez na obra de um autor – que nos recorda que o corpo é sobretudo memória: é ele que melhor recorda dores e os recessos onde se acoitam antigas escolhas. Na verdade, na carta onde surge Πλουδοκέω (ploudokéo – qualquer coisa como “aguardar a estação propícia para a navegação”), esse verbo não constitui um sábio desafio à prudência nem ao calculismo, mas justamente o contrário: as cicatrizes são testemunhos de sortilégio.

Os Argonautas avançavam a toda a velocidade em direcção a casa e, velado pela bruma, avistava-se já no horizonte o contorno do Peloponeso. Subitamente, abateu-se sobre a nau uma furibunda tempestade que a arrastou durante nove dias e nove noites, até encalhar nas areias do golfo de Sirte. Não havia saída para os navios ali naufragados. O Argo foi empurrado pela tempestade para a enseada mais recôndita do golfo. A quilha afundava-se agora na areia, não no mar.

Os nautas tornaram-se presa de um imenso desconsolo; aquela terra esverdeada e fétida estendia-se em direção ao infinito até se perder de vista. Nenhum sinal de riachos, caminhos, estradas, ou da casa de algum pobre pastor. Sobre tudo pendia uma quietude irreal, pesada, imprópria para o ser humano e para a vida.

Assustados, os Argonautas eram espectadores do seu próprio naufrágio e maldiziam aquela regra universal segundo a qual a viagem de regresso deve ser necessariamente diferente da viagem de ida. Lançavam incessantes imprecações contra essa lei imposta por Zeus.

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Pela primeira vez, já com o velo de ouro nas mãos, experimentavam o fracasso e entregavam-se a rancores inúteis, misturados com insuportáveis remorsos. Cederam à cómoda tentação de culpar o outro: a raiva, estéril como o deserto, faz com que nos sintamos inocentes, vítimas de castigos injustos e desobrigados da mais simples de todas as regras – nem sempre as coisas acontecem como era suposto. Quase nunca, na verdade.

Por entre lágrimas, começaram a amaldiçoar Némesis, ignorando que o fracasso faz parte da vida falível – e, portanto, humana – e confundindo-o com uma vingança do destino. Mas é impossível culpá-lo; também a nós nos acontece, todos os dias, em caso de naufrágio. Todos nós podemos tropeçar.

Dar um passo em falso, quando corremos apressados para apanhar o metro ou quando a emoção nos embota. Isto e apenas isto significa “fracassar”, “falhar”, do latim fallere e antes ainda do grego σφάλλω (sphállō) – “cair”, “tropeçar”, “errar”.

Hoje, contudo, o fracasso, a falha, tornou-se uma humilhação pública ou segredo vergonhoso, sinónimo de desastre, de catástrofe, colapso, estigma da derrota que se aplica agora à pessoa, sujeito escorraçado para o círculo dos falhados, dos que caíram, dos que quebraram. Um pouco à semelhança da palavra “naufrágio”, tão frequentemente utilizada como sinónimo de derrota pessoal, quando, na realidade, diz respeito apenas a um navio “ferido” e não ao timoneiro, obrigado como está a assumir a responsabilidade de conduzi-la e colocá-la sempre a salvo.

Nós, modernos náufragos das palavras, ao afastarmo-nos do verdadeiro sentido do “fracasso”, fizemos da queda a pior das culpas, o maior dos defeitos, que temos de camuflar na nossa subida até ao cume com passos obrigatoriamente rápidos e perfeitos, jamais inseguros.

Agimos como seres impolutos, olhamos com condescendência para os mais fracos, invocamos a seleção natural e esquecemo-nos de que nunca existiu, nem é suposto existir, vida sem erro. O primeiro dom do ser humano é a “falibilidade”, precisamente aquilo que o separa do divino infalível.

Mais vale desconfiar de quem nunca se equivoca, de quem nunca cai. Nem sempre é o melhor, talvez seja até o mais fraco, por não se consentir o luxo de se deixar levar pela sua humanidade falível, isto é, imprevista, surpreendente.

Como a palavra claramente nos recorda, “falhar”, “fracassar”, não é culpa nem castigo, não é infração nem injustiça. Estamos no mundo para cair e depois voltar a erguer.

O verdadeiro falhanço, o verdadeiro fracasso, é o conceito oposto: falhar não significa nunca tropeçar, mas decidir permanecer no chão.

A arte de falhar é a mais humana das fragilidades e, como tal, merece a maior delicadeza. Como não sorrir diante dos primeiros passos, incertos e vacilantes, de uma criança que começa a aprender a andar? E, caindo, não a colocam os pais imediatamente de pé, beijando-a?

Acontece quase sempre que a falha, o fracasso, por doloroso que seja, se visto a partir da correcta perspectiva grega, poderá até provocar o esboço de um irónico sorriso.

Como o do Argo, por exemplo, um navio guiado por um grupo de rapazes, que, depois de ter escapado a tanta água, se vê agora condenado a naufragar em terra firme.

Existirá algum momento na vida em que possamos ser mais desajeitados, mais ineptos, mais trapalhões, do que naquele preciso instante em que nos apaixonamos? Sentimo-nos tão imperfeitos na nossa roupa que consumimos horas na ponderação e na escolha; as nossas mãos tremem ao pegar na chávena de café; o sorriso, líquido e indomável, movimenta-se pelo rosto enquanto o molho invade a camisa ao jantar… As palavras parecem-nos sempre vacilantes e imprecisas, nunca “as certas”. No entanto, não existem palavras perfeitas, apenas as nossas para dizer quem realmente somos. O amor é a aventura com a maior taxa grega de insucesso.

Tal como aconteceu com Jasão e Medeia, não há obstáculo, infortúnio ou empreendimento que nos impeça de nos apaixonarmos. Frase alguma no mundo implica maior risco de tropeçar, resvalar, cair, ruir do que eu amo-te – razão pela qual é tão temida.

No cinismo imperante e na frieza dos corações, a falha, o fracasso, tornou-se uma total e completa condenação à expulsão de uma sociedade baseada no sucesso e na obrigação – tantas vezes mascarada até pelo Direito – de vencer sempre. É hoje obrigatório chegar sempre primeiro, custe o que custar, e tropeçar é, evidentemente, proibido.

O resultado são índices elevadíssimos de insatisfação e ansiedade, especialmente entre os mais novos, a quem ninguém estendeu a mão para ajudar a levantar-se na primeira vez que experimentaram uma queda. Miúdos que, ao primeiro erro, ficaram sozinhos, caídos. O fracasso transformou-se numa infração, numa violação das regras do implacável jogo moderno da perfeição. Eles são sancionados, depois expulsos. Por fim, eliminados.

Foi para enfrentar tudo isto que a arte de falhar, de fracassar, se converteu em matéria educativa numa das principais instituições académicas dos Estados Unidos, o exclusivo Smith College, no Massachusetts. Desde 2017, os estudantes podem optar por História da Arte, Química, Literatura Francesa ou Fracasso. A Universidade oferece um curso intitulado Failing Well: fracassou Fleming esquecendo-se das lamelas sobre a bancada e deixando-as contaminar com um fungo que viria a descobrir depois ser a Penicilina? Fracassou Eça de Queiroz enquanto, em Civilização, burilava a prosa e o carácter de A Cidade e as Serras? Fracassámos realmente quando a resposta a uma carta nossa chega quando já nada esperávamos – aquele preciso momento em que estávamos afinal prontos para a receber?

Para garantir velas enfunadas, deve zarpar-se no momento certo. Sabe-o muito bem quem vive do mar. No entanto, permanentemente consumidos por uma inquietação que nos impacienta, esquecemos que também ao fracasso convém agradecer os tempos, pois quantas vezes é no mais profundo abismo que reconhecemos o amor?

Quão melhor saborear o rosto da noite, o hálito escuro, a terra trémula em que, volta e meia, tropeçamos. A imperfeição humana é tão heroica como a força que nos leva a partir. É quem não encontra o amor – hápax decantado nos nossos gestos – que está verdadeiramente perdido.