Cinquenta (50) anos depois do 25 de abril de 1974 encontramo-nos, agora, a sociedade portuguesa e a comunidade internacional, numa verdadeira encruzilhada de grandes transições e, mesmo, de mudança paradigmática. É, pois, o tempo da grande prospetiva e, talvez, de um novo Momento Polanyi, o momento de uma Grande Transformação (Polanyi, 1944). Na verdade, para lá da espuma dos dias temos à nossa frente o pós-estruturalismo das grandes transições já em curso que anunciam mudanças paradigmáticas de grande alcance na vida das nações e nas nossas vidas individuais. Os efeitos diretos e indiretos dessas grandes transições, devido aos seus impactos assimétricos, provocam gaps de ajustamento nos diferentes territórios e mudam substancialmente a estrutura de custos e benefícios desses territórios e suas comunidades. Vale a pena olhar brevemente para essas grandes transições em curso e perceber como elas podem convergir e/ou divergir em direção a uma Grande Transformação à maneira de Polanyi (A Grande Transformação, 1944). Pensemos um pouco no nosso país e vejamos o alcance dessas mudanças paradigmáticas.
Transição climática, a mudança de regime para o Antropoceno
Da subida das temperaturas aos eventos climáticos extremos, da subida dos mares à erosão costeira, da escassez de água à erosão dos solos e desertificação, das perdas de biodiversidade à degradação dos serviços de ecossistema. Mas também a importância crescente da economia azul, por exemplo, o acesso aos fundos marinhos e materiais raros, as energias alternativas offshore, os cabos submarinos e a circulação de dados, a aquacultura oceânica. No nosso caso, uma prioridade absoluta.
Transição energética, a descarbonização da economia
A descarbonização da economia com metas para 2030 e 2050, o ano da suposta neutralidade carbónica. Esta descarbonização acontecerá em todos os setores de atividade: no sistema de produção elétrica, no parque de edifícios, no sistema de transporte, nos processos industriais, na economia dos resíduos, nas práticas agrícolas sustentáveis, no reforço da capacidade de sequestro da floresta nacional, na economia azul, na descarbonização da administração pública e das cidades. As redes inteligentes tomarão conta destes setores e a desmaterialização de processos e procedimentos permitirá poupar muita energia. Porém, se a nova estrutura de custos e benefícios de contexto não for acompanhada de um sistema de incentivos apropriado e de uma nova estrutura de despesa fiscal, ninguém poderá garantir o sucesso do novo mix energético. Com efeito, a descarbonização da economia implica uma nova geração de investimentos públicos no território, sobretudo, a sua cobertura digital adequada para processar um grande volume de dados. A arritmia da inovação e do investimento em tantos setores que deviam estar conectados para produzir bons resultados ocasionará, inevitavelmente, um efeito de dissipação do próprio processo de descarbonização que é preciso levar em linha de conta desde o primeiro momento.
Transição ecológica, a mudança de regime agroambiental e agroalimentar
A descarbonização da economia, ao alterar os custos e benefícios de contexto e a posição relativa dos agentes económicos nas cadeias de valor respetivas, aponta para a mudança dos regimes agroambiental e agroalimentar: bio regiões, sistemas produtivos locais e recursos endógenos, mosaicos paisagísticos, silvicultura preventiva, bosquetes multifuncionais e gestão de fogos florestais, restauração de biodiversidade e serviços de ecossistema, lado a lado com múltiplas modalidades de agricultura sustentável, certificada e validada. Também aqui é necessária uma nova estrutura de custos e benefícios e respetiva política regulatória. Uma prioridade absoluta.
Transição tecno-digital, a afirmação dos valores da ecossocioeconomia
Mais dados e mais interligados. Mais rede 4G e 5G, mais internet dos objetos, mais robótica e automação, mais realidade aumentada e virtual, mais inteligência artificial, mais regulamentos e regulação europeia. Esta aceleração tecno-digital altera substancialmente a fabricação industrial, a produtividade, os mercados de trabalho e os regimes salariais, as cadeias de abastecimento, a bioeconomia circular e sustentável, e tem um impacto transversal sobre os modelos de empresa e negócio e sua repartição pelo território. O grau de autonomia e abertura externa da União e a coabitação pacifica entre as regras do mercado único, as ajudas de estado e a repartição dos fundos estruturais determinarão a natureza e alcance do novo regime da ecossocioeconomia. Estas alterações devem, por isso, ser balizadas pela nova política regulatória da União Europeia sob pena de se transformarem em fatores ativos de violação das regras de concorrência e prejudicarem o próprio processo de descarbonização da economia em curso.
Transição socio-laboral, a mudança estrutural na produtividade
A entrada em cena da rede 5G irá acelerar a transformação tecno-digital das atividades e serviços. A automação e a robótica, a internet dos objetos e a realidade aumentada e virtual, as plataformas digitais e os marketplaces, a inteligência artificial nas suas várias linguagens, o metaverso e os ambientes simulados, irão progressivamente transformando as dimensões espaço-tempo do universo socio-laboral. A fabricação inteligente, a agricultura de precisão, o comércio eletrónico, a telemática em muitos serviços, os assistentes inteligentes, introduzirão alterações significativas nos locais de trabalho, nos horários de trabalho, na mobilidade urbana, na relação contratual, nas remunerações, nas relações sociofamiliares e, correlativamente, na produtividade do trabalho. Uma política pública nesta área faz imensa falta.
Transição demográfico-migratória, a recomposição da estrutura social
O envelhecimento da população, o declínio demográfico, a mobilidade generalizada no espaço da União Europeia, as transformações na estrutura sociofamiliar, os fluxos migratórios, irão alterar profundamente as relações entre o saldo natural e o saldo migratório e induzirão uma mudança profunda na composição da estrutura social do país. A linha de rumo em matéria de especialização produtiva, o peso específico da atividade turística e residencial, a extensão dos serviços assistidos por tecnologias inteligentes, o ensino e a formação técnico-profissional, determinarão, em boa medida, a nova composição da estrutura social. Seja como for, doravante, as sociedades serão muito mais multiculturais, fica por saber se serão mais tolerantes.
Transição sociocultural, mudanças no capital simbólico e institucional
As mudanças estruturais no universo laboral e na estrutura social, em conjunto com as inovações introduzidas pela economia criativa em sentido amplo determinarão alterações significativas no capital simbólico e institucional. Fica por saber qual o ritmo destas transformações e qual a melhor forma de abordar as assimetrias desses diversos ajustamentos da transição sociocultural. Nesse sentido, será fundamental o papel desempenhado pelas comunidades inteligentes, criativas e solidárias da emergente sociedade colaborativa em formação. Quero crer que uma das principais mudanças socioculturais será a desinstitucionalização e transição do estado-silo vertical para uma sociedade colaborativa mais descentralizada e distribuída, e onde os bens comuns coabitem com os bens públicos do estado-providência de forma integrada e complementar.
Transição geopolítica, a formação de um mundo multipolar
A conjuntura geopolítica atual (abril de 2024) revela-nos que deixou de existir a ordem liberal das instituições multilaterais do pós-guerra, digamos, a ordem do ocidente alargado. Com efeito, estamos, claramente, a caminho de um novo mundo multipolar com as correspondentes áreas de influência em formação e a corte de países alinhados ou em vias de alinhamento. Não sabemos, ainda, quando e em que condições se fará a estabilização do mundo global que herdámos daquela ordem liberal e em que medida a convergência entre a geoeconomia e a geopolítica regional da nova ordem multipolar será uma alternativa viável aquela ordem global. Reina a incerteza. A Grande Euro-Asia, da Rússia à China, e o Grande Médio Oriente preparam-nos grandes surpresas mais à frente.
Transição securitária, o paradigma da cibersegurança
A transição securitária é inevitável e pode ser observada em dois planos. No plano das relações humanas o ciberespaço converte a preservação da privacidade individual numa verdadeira aventura pessoal. No segundo plano, o mesmo ciberespaço transforma os objetivos de segurança coletiva num desígnio nacional da maior importância. Em qualquer dos casos estamos a falar de cibersegurança. No primeiro caso, o sistema tecno-digital transforma a vigilância do Estado numa espécie de guarda pretoriana de um putativo candidato a autocrata, no segundo caso, e pelas razões que expusemos antes acerca do mundo multipolar, são os interesses geoeconómicos e geoestratégicos do país que estão sob forte ameaça. A ciberguerra já começou.
Transição democrática, a caminho de uma democracia complexa
Todas as grandes transições anteriormente referidas têm impactos significativos no núcleo duro dos nossos regimes democráticos devido ao elevado grau de incerteza e risco que introduzem na vida coletiva e individual dos cidadãos. Confrontadas com estas grandes transições as sociedades democráticas estão perante uma nova estrutura de custos e benefícios, certos os primeiros, incertos os segundos, mas todos eles com impactos muito relevantes sobre os territórios nacionais e infranacionais e gerando graves desigualdades sociais e muito descontentamento e deceção com a vida política. Em consequência, os regimes democráticos endurecem, a demagogia e o populismo aproximam-se do poder, a via autocrática está iminente. Nas palavras minimalistas, mas avisadas de Daniel Innerarity, estamos a caminho de uma democracia cada vez mais complexa (Innerarity, 2022).
Notas Finais
Num pequeno país e numa pequena economia aberta muito dependente do exterior, passados que são 50 anos sobre a revolução de abril de 1974, estas mudanças paradigmáticas ultrapassam as fronteiras nacionais e funcionam como variáveis exógenas que determinam e condicionam o comportamento de toda a sociedade portuguesa. Trata-se, agora, de elaborar uma estratégia de desenvolvimento a partir de uma nova estrutura de custos e benefícios. Falamos de custos de contexto, formalidade, mitigação e adaptação, ajustamento, cobertura de riscos, oportunidade.
É neste ambiente bastante saturado que emergem as implicações transversais da revolução tecno-digital e, neste particular, a desintermediação política, institucional e administrativa, se quisermos, a desmaterialização e dessacralização da política. A boa nova é que a revolução digital é uma excelente oportunidade para refrescar a atividade política tal como a conhecemos. Comunidades descentralizadas de autogoverno, plataformas de gestão local e atores-rede são algumas das faces da revolução digital e da política nova, lado a lado com a política velha, mais hierárquica, vertical e corporativa. As primeiras como dispositivo de conexão das comunidades online, as segundas como organização material das comunidades offline ainda presentes no terreno.
Assim, podemos afirmar, a política convencional, hierárquica e vertical, envelheceu e deixará de ser progressivamente o herói da sociedade, já não tem o poder de obrigar, está sobrecarregada, deve descentralizar uma parte das suas atividades nos atores da emergente sociedade em rede. Em seu próprio benefício, a autolimitação da política velha servirá para a proteger da sua própria mediania e trivialidade. Libertar os espaços políticos convencionais dos antigos constrangimentos é uma grande oportunidade, mesmo sabendo que na terra dos narcisos e do individualismo metodológico tal não se afigura uma tarefa simples.