1 Se um destes dias o Chega, por um destes recentes fenómenos de um planeta irado se sumisse da face da terra, o PS ficava sem argumentos. Ou melhor, sem argumento, no singular. O próprio Chega já de si não os tem, mas o PS parece órfão de oposição. Até hoje o país não sabe o que os socialistas pensam do Orçamento de Estado e a não ser duas linhas, a que o seu líder chamou vermelhas, pouco mais se vislumbrou no horizonte em matéria de propostas (ou contra propostas) com substância e proveito. Chega-lhes o Chega.
O Chega como vazadouro para onde o PS absurdamente insiste e persiste em atirar o PSD; o Chega como uma obsessão segunda a qual Luís Montenegro no fundo, no fundo, quereria ser como eles, adoptá-los na clandestinidade de si mesmo, roubar-lhes slogans e diatribes.
Tão pobrezinho e tão estafado tudo isto. Não haverá melhor?
2 O mais extraordinário é que a nenhum deles – PS ou Chega – ocorra a importância de ser e fazer oposição com inteligência e utilidade: ninguém joga sozinho no tabuleiro partidário nem o poder reside numa ilha sem acesso. Ou que nenhum dos dois se dê conta que só uma oposição politicamente forte e fortemente norteada contribui para uma saudável vida democrática; e só um sério jogo democrático entre os parceiros partidários e o poder, eleva o debate público – sonho por realizar – e com isso a qualidade cívica, política e cultural de um país – triplo sonho por realizar. Ou seja: quanto mais errática, inoperante, desfasada da realidade fôr a oposição, mais entregue a si mesmo permanece um Governo.
Tudo se exige audivelmente aos governos, tudo se lhes critica – sobretudo se não forem de esquerda – e pouquíssimo às oposições. Quem lhes pede – também audivelmente – responsabilidade, seriedade ou critério na sua vigilância democrática sobre a acção governamental? Em vez de amuos desconfiança e estados de alma?
3 Não passou despercebido a ninguém, da rua às elites, à classe política, decisores, patrões, sindicatos, media, o caminho de pedras percorrido ate à viabilização do Orçamento de Estado: toda plateia do país olhou para esse palco. Seria porém o cúmulo da ilusão pensar que o Governo chegou finalmente a bom porto (não entrou sequer no porto) com esta viabilização. Mais: seria um erro não perceber que corrido o pano sobre o primeiro acto, ele voltará a subir (porventura com mais animosidade e maior irracionalidade), para um remake dos quadros vivos de comportamento pessoal e político a cujo testemunho fomos convocados no primeiro acto. Falo da espinhosa e (dispensavelmente) longa caminhada da negociação do orçamento.
Por outras palavras, temo esse remake. É que se, na história parlamentar dos orçamentos em Portugal, este OE figura já como um marco do “como não negociar”, não se excluiu que um “caminho de pedras 2” traga a surpresa de uma, digamos, excessiva, descaracterização na “especialidade”.
Dizem-me que exagero. Não há-de ser nada. Admito. Mas este hábito de ir à natureza humana quando não compreendo comportamentos e atitudes tem-me afinado a observação. Se as coisas são como são, as pessoas também.
4 Surpreendi-me com a antecipação tão convictamente unânime de que a notícia da viabilização socialista do OE iria “esvaziar” o Congresso do PSD. Se não fosse tão absurdo, era anedótico: ter-se-ia preferido um congresso transformado em mais um episódio – desta feita de longa duração – da telenovela “O Orçamento”? E não é que o Congresso foi “morno” porque já se sabia o fim da novela? De onde virá tão estranho “entendimento” do que é um congresso, do que é a relação entre partidos, do que é a política, do que é a democracia?.
O congresso foi classificado como “morno” porque simplesmente destoou, falhando em todos os requisitos com que se constrói e de que se alimenta o tempo político de hoje: ávido de “novidades”, consumidor de controvérsia, necessitado de surpresa, amante da intriga, produtor de fake news. E como não consta que tenham havido, foi uma “maçada”. Mas a política esteve lá, e distraídos ou entediados estariam o que não deram por ela. E quando deram – tardiamente – foi para logo “fundir” a razão de ser de uma das sete prioridades governativas de Luís Montenegro (a revisão da disciplina de Cidadania) na “ideologia” do Chega (e onde haveria de ser?). Ora aí estava uma “noticia”. E com jeito ainda se lhe atrelava um subentendido: ah afinal o Montenegro entende-se com eles, etc. O primeiro ministro entende-se sobretudo com o bom senso. Sabendo que há uma considerabilíssima parte de pais de alunos que discorda – e não é de hoje – do teor da disciplina; que rejeita a absurda desadequação entre idades e conteúdos de parte do currículo da mesma disciplina; que se indigna com alguns dos textos recomendados ou com a forma que assumiram os debates já havidos na escola pública em torna desta questão, o primeiro ministro falou apenas numa “revisão”. A indignação ia fazendo as paredes do Congresso irem pelo ar: em nome de quê e com que autoridade política e ideológica é que o Governo se propunha rever “aquela” disciplina?
E assim estamos. Descobrindo aliás que vale mais perder mais tempo nos écrans com a indignação de uma minoria militante, radical e insensata do que com a fundamentação de alguém cujos votos lhe permitem pelo menos conjecturar sobre o todo nacional com sensatez e serenidade políticas. Mas no pavilhão do PSD em Braga o efeito foi de contágio: ninguém desafinou na expedita assimilação do PSD com o Chega.
5 A “Europa” sempre tão invocada, citada, admirada, defendida, louvada – e ainda bem – está a usar de mão de ferro, e sem sombra de dúvida, na questão da imigração. Cito apenas três casos que conheço menos mal, a Alemanha, França e Dinamarca. Muito pouco se alude a isto entre nós. Contam-se mal ou enviesadamente as tristes histórias que vão ocorrendo entre nós e que há 4, 5 anos diríamos impossíveis de acontecer em Lisboa à luz do dia, ou mesmo no breu da noite. Não se contam bem as histórias, porque isso agradaria ao Chega, dando-lhe razão?
O pior porém é que ninguém do actual PS, nem as suas amadas extremas esquerdas, compreenderam que é exactamente o contrário: o Chega “fez-se” e cresceu porque ninguém – e muito principalmente o PSD – souberam antecipar o que já estava a caminho. Não era difícil de ver mas não estava na moda nem na agenda deles; e a seguir também não foram capazes de tratar ou lidar com tão tremenda, delicada, complexa questão, quando ela já tinha uma existência real entre nós. Nunca o fizeram, saem pouco do centro de Lisboa, não se aventuram pelas “periferias”, ignoram o que é ter medo de as atravessar ou o morar paredes meias com seres humanos capazes de uma súbita alteração da ordem para o susto ou a violência (tenham a cor, a nacionalidade ou o credo que tiverem).
Com inconcebível atraso, vai começar-se a agir. Honra seja feita a este governo, mas atenção: esperam-se informações, sinais, acções concretas, medidas, serviço. E obviamente energia, eficácia, organização. Sim, é muito para um país que pratica pouco qualquer destas três últimas (grandes) “virtudes”. Mas que Luís Montenegro está a pôr as mãos nalguma massa, ficou muito claro este domingo. Fê-lo com inteligência política, capacidade de elencar prioridades, vontade de agir, senso comum. E no tom certo, o que não é despiciendo por ser hoje um bem quase em extinção.
Ficamos a espera de ver que pão sairá da massa.