A primeira volta das eleições presidenciais na Colômbia, no passado Domingo, 29 de Maio, foi mais um sinal da mudança política, ideológica e sociológica que assalta o mundo euroamericano, com novas forças de esquerda e de direita a concorrer com os partidos tradicionais ou mesmo a tomar o seu lugar.

O paradigma é válido para muitos países da União Europeia e está a repetir-se no continente americano, de Norte a Sul. Nos Estados Unidos o fenómeno aconteceu no interior dos partidos tradicionais, com o wokismo democrata e o trumpismo republicano a ganharem terreno, numa radicalização progressiva, não só de ideias mas também de métodos de luta, que chega a pôr em causa a própria separação de poderes. Para Robert Reich, é de uma verdadeira “guerra civil ideológica” que se trata, ou foi assim que o antigo Secretário de Estado do Trabalho de Bill Clinton recentemente descreveu o clima político norte-americano no New York Times. Também no Brasil se espera um duelo final entre Jair Bolsonaro e Lula da Silva nas próximas presidenciais já que nenhum dos candidatos centristas deverá resistir à bipolarização.

Destinos trágicos

A Colômbia, pela força da ficção (e da realidade), tem o infortúnio de quase só ser conhecida como a pátria dos narcotraficantes, de Pablo Escobar aos cartéis de Cali e Medellín. Mas tal como Portugal é mais do que uma pátria de futebolistas ou o palco de um último sonho comunista na quase velhice da URSS, também a Colômbia é mais do que o cenário dos narcos.

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Diz-se em Espanha que é na Colômbia que se fala “o melhor castelhano das Américas”; porém, mais importante do que esta ambígua distinção do antigo colonizador, é a grande literatura que a Colômbia tem dado ao mundo, a começar por Gabriel García Márquez mas sem se esgotar nele – com autores como Hector Abad Faciolince, Laura Restrepo ou Juan Gabriel Vasquez, todos traduzidos em português, ou como William Ospina, criador de uma empolgante trilogia inspirada nas viagens, aventuras e atrocidades de toda uma épica galeria de heróis “maus”: os conquistadores e colonizadores espanhóis da América Pedro de Ursúa, Francisco de Orellana, Gonzalo Pizarro, e Lope de Aguirre.

Há, na vida real colombiana, um inequívoco destino trágico que paira sobre as cabeças de quem lá vive: dizem a s estatísticas que, entre 1958 e 2012, foram ali assassinadas por razões políticas 220 mil pessoas. Dessas 220 mil pessoas, pobres, remediadas e privilegiadas, 80% eram civis, não combatentes.

Álvaro Gómez Hurtado, que conheci em Washington em Dezembro de 1980 a seguir à eleição de Ronald Reagan, foi um destes assassinados, e o seu itinerário de político conservador colombiano e de homem do sistema diz muito do país de que estamos a falar.

Álvaro Gomez era filho de Laureano Gomez, chefe do Partido Conservador, várias vezes ministro e eleito Presidente da República em 1950. Laureano ficou doente e foi substituído por um político da sua confiança, o ministro da Defesa Roberto Urdaneta; mas em 1953 o golpe militar do general Rojas Pinilla interrompeu o governo de Urdaneta. O golpe aconteceu no quadro de um conflito civil que ficaria conhecido por “La Violencia”. A família de Laureano Gomez esteve exilada em Espanha, nos anos 50. No regresso à Colômbia, Álvaro fez a sua carreira universitária e jornalística, dirigindo El Siglo, e veio a assumir a liderança do Partido Conservador, “sucedendo” ao pai. Enquanto líder dos conservadores negociou com o chefe do Partido Liberal um acordo para uma Frente Nacional. Candidatou-se pela primeira vez à presidência em 1974 (os outros dois candidatos eram, como ele, filhos de ex-presidentes) mas perdeu para Lopez Michelsen. Foi embaixador nos Estados Unidos e em 1986 voltou a candidatar-se, sendo derrotado pelo liberal Virgilio Barco. Em Março de 1988 foi raptado por elementos do M-19 (Movimento 19 de Abril), uma organização extremista de guerrilha urbana que acabou por libertá-lo ao fim de 53 dias de cativeiro e de negociações. Concorreu outra vez à presidência em 1990, numa campanha eleitoral em que três dos candidatos foram assassinados, e voltou a perder, dessa vez para o liberal César Gaviria. Em 2 de Novembro de 1995 Álvaro foi assassinado ao sair de dar uma aula de História Constitucional. Não se sabe se por terroristas de esquerda, se por paramilitares, se por narcos.

Uma “ditadura perfeita”

Quase todo o século XX colombiano se passou, politicamente, entre liberais e conservadores. Houve derivas à esquerda, influenciadas pelo Partido Comunista da Colômbia, alinhado com Moscovo, e um período curto de ditaduras militares, como a de Rojas Pinilla, que alguns qualificarão como “populista de direita”, mas o bipartidarismo resistiu.

Com a revolução cubana, o cisma sino-soviético e o Maio de 68 surgiram na Colômbia esquerdas fora da tutela soviética. Apareceu ainda a Teologia da Libertação, de que foi representante o padre colombiano Camilo Torres, que integrou o Exército de Libertação Nacional e morreu em combate na guerrilha. Assim, os anos 70 viram ali um revivalismo de famílias de esquerda, trotskistas e chinesas, partidárias da acção directa e hostis à luta eleitoral legal, mas sem que o sistema se alterasse.

A tudo isto viera juntar-se o narcotráfico, com os cartéis da droga e a sua imensa riqueza e influência na política, pela corrupção e pelo medo. Note-se que o país não alcançou o lugar cimeiro na economia narco pela produção de cocaína, mas sim pela sua refinação e distribuição internacional. Nos anos 80, as receitas da cocaína ultrapassaram as do café.

Mas nem esta a economia paralela alterou o rotativismo, que entrou pelo século XXI e só foi aparentemente interrompido em 2010, com a eleição de Juan Manuel Santos, pelo Partido Social da Unidade Nacional.  Santos sucedia a Álvaro Uribe, do Partido Liberal. O seu Partido Social da Unidade Nacional tinha sido criado em 2005 por dissidentes do Partido Liberal, que depois se juntaram a outros liberais e conservadores, propondo reformas económicas liberalizantes e uma aproximação aos Estados Unidos e afirmando um comum repúdio do bolivarianismo chavista. Mas apesar da aparente novidade das siglas, as famílias dominantes eram as mesmas e a oligarquia permanecia intacta. Ivan Duque, um protegido de Uribe, venceria as eleições de 2018, derrotando Gustavo Petro, esse sim candidato de uma nova esquerda alheia ao “sistema” e independente do Partido Liberal.

Entretanto, nem a fragmentação activista nem o narcotráfico nem a guerrilha pareciam alterar substancialmente um sistema que, praticamente desde a independência, mantinha o poder nas mãos de uma oligarquia não só de classe, mas também de famílias, com o poder a rodar entre conservadores e liberais e a passar de pais para filhos e de filhos para netos. Entre 1914 e 2010, tirando o quinquénio militar entre 1953 e 1958, conservadores e liberais foram alternando na Presidência da República: era, diziam os críticos, uma “ditadura perfeita”, em que o governo, conservador ou liberal, acabava por ir parar “sempre aos mesmos”.

Os filósofos e historiadores gregos, de Aristóteles a Tucídides, perceberam e registaram a natureza inevitavelmente oligárquica do poder político em estabilidade; coisa que as modernas escolas realistas, de Maquiavel a Vilfredo Pareto, de Karl Marx a Raymond Aron, também souberam perceber e registar, mesmo quando a criticavam. As excepções, o poder pessoal de um Rei ou de Líder – a monocracia absoluta – ou o poder de todos – a democracia plena – podiam ser formas constitucionais, mas acabavam, na prática, por assumir contornos oligárquicos, num processo de “circulação das élites”, como o descrito por Pareto. Daí a “ditadura perfeita” da democracia liberal colombiana

Entre dois “outsiders”

Nesta eleição, o candidato apoiado pelas direitas sistémicas conservadoras e liberais, na coligação Equipo por Colombia, era Frederico (“Fico”) Gutiérrez, ex-alcaide de Medellin. Mas “Fico” ficou pelo caminho, com 24% dos votos.

O candidato da Esquerda Unida, Gustavo Petro, pela Unión Patriótica, que obteve 40% dos votos, tem um perfil diferente do dos políticos colombianos tradicionais. Nascido em 1960, Petro integrou aos 17 anos a guerrilha do M-19, o grupo terrorista que protagonizou o assalto ao Palácio da Justiça, com mais de 100 vítimas, mas, desde então, mudou muito. Em 1990 foi um dos signatários do acordo de paz com o Governo; em 2010 foi candidato à Presidência da República pelo Polo Democrático Alternativo; em 2012 foi eleito alcaide de Bogotá e em 2018 concorreu contra Ivan Duque e perdeu.

Agora que os tempos são outros, volta a tentar a presidência. Petro apresenta os clássicos programas de esquerda latino-americana – como as nacionalizações no sector económico, na saúde e na educação – mas traz versões neo-ecológicas, como proibir as novas explorações petrolíferas o que na actual conjuntura nacional e mundial, em que a energia é um recurso útil, peca por algum irrealismo. O candidato preocupou-se, também, em actualizar-se “ideologicamente”, incluindo no programa os temas da nova agenda woke e LGBT. Para tal, foi buscar como candidata a vice-presidente uma mulher negra – Francia Marquez Mina –, que vem denunciando o “racismo sistémico”, o “privilégio branco” e o “supremacismo branco” como factores estruturantes da desigualdade social na Colômbia.

Para os críticos, a agenda agora agitada por Petro é uma importação norte-americana sem tradução directa na Colômbia, onde dizem que nunca houve Apartheid ou sequer segregação oficial. É a universalização cega de uma cartilha neomarxista que quer substituir a luta de classes pela luta de identidades, a fim de compensar a erosão do velho binómio proletariado/burguesia com a constante adição de outros polos conflituantes: brancos/negros; homens/mulheres; heterossexuais/homossexuais, bissexuais, transgéneros e outros géneros.

Mas a grande surpresa da eleição, com 28% dos votos, foi um outro “outsider”: Rodolfo Hernandez, de 77 anos, empresário da construção civil e ex- alcaide de Bucaramanga, capital da província de Santander, a quinta província económica da Colômbia mas a primeira em renda per capita e a que tem menos desemprego. Hernandez fundou em 2019 a Liga de Gobernantes Anticorrupción e é descrito como “independente, controverso, antipolítico e populista”. Qualifica-se como “um engenheiro que quer tirar os ladrões do governo”, acrescentando que a corrupção é o maior imposto que os colombianos pagam.

Quando lhe chamam o Trump colombiano, fazem-no pela sua linguagem directa e irreverente, o uso e abuso de redes sociais, como o Tiktok, onde tem mais de meio milhão de seguidores. Algumas das suas propostas de controlo de gastos públicos são engenhosas mas demagógicas, como nomear embaixadores colombianos já residentes no exterior, ou premiar os denunciantes de actos de corrupção de políticos e funcionários.

Populismo à porta?

Parte dos estudiosos do populismo latino-americano considera que a Colômbia, uma grande economia cafeeira, por razões da sua tardia industrialização, não conheceu fenómenos populistas de tipo nacional-autoritário, como o peronismo argentino e o varguismo brasileiro. Eliecer Gaitán, nos anos 30 e 40, terá estado próximo desse tipo de populismo, mas Gaitán não triunfou e foi assassinado em 1948, em Bogotá.

O confronto da segunda volta, em 19 de Junho, é, por isso, uma novidade, O duelo entre dois metecos ou hilotas que capitalizaram o descontentamento da maioria marca a ruptura da hegemonia de uma classe política e político-social que monopolizou o poder num rotativismo pactado e sobreviveu a décadas de violência e crime organizado.

 “Fico” Gutiérrez disse que iria votar em Hernandez; Hernandez respondeu-lhe que não fazia alianças. Assim, num país importante de um subcontinente também importante – que as últimas Administrações americanas descuraram e onde a China tem vindo a avançar economicamente em grande força nos últimos vinte anos –  o  resultado das eleições é ainda uma incógnita.