A economia do país falou mais alto. E eu acho bem. O país não pode morrer em confinamento. Posto isto, há que dizer, muito claramente, que a epidemia não está controlada. Há que assumir que temos gravíssimos problemas na região de Lisboa e Vale do Tejo e que outras regiões se seguirão se não atuarmos todos, entidades e individualmente, de forma assertiva e responsável.
A mensagem que o Governo, a DGS e a comunicação social estão a passar é falaciosa e pode conduzir-nos a um desastre de saúde pública. Os números publicados são acompanhados de um discurso de desvalorização dos mesmos. São números crescentes porque “estamos a testar mais” e a “maioria das pessoas são assintomáticas e sem gravidade”. Os internamentos nos hospitais mantêm-se estáveis e os cuidados intensivos têm apenas “65% da ocupação”. Tudo aparentemente tranquilo. Chama-se a isto “com a verdade me enganas”.
E qual é a verdade de quem não está sentado num gabinete fresquinho a analisar indicadores? E qual é a verdade de quem está na linha da frente num hospital fustigado com esta epidemia? A minha verdade enquanto médica infeciologista no Hospital Fernando Fonseca, vulgo Amadora-Sintra? A minha verdade que é bastante mais cinzenta do que as cores do arco-íris “tudo vai ficar bem”.
Ora vejamos:
1“Estamos a testar mais” – verdade, corretíssimo. Falta dizer que não testaram o suficiente durante os meses da Março e Abril quando a epidemia nesta área era controlável. Os centros da comunidade abriram praticamente sem testes. Os contactos ou casos suspeitos não eram testados de forma atempada e perdeu-se uma oportunidade de ouro para controlar a epidemia. Estamos a testar mais, sim, porque o acesso aos testes na comunidade deixou de ser condicionado e porque se deu também aos médicos de família a possibilidade de o fazerem e com critérios clínicos muito menos estanques dos que existiam inicialmente.
2“A maioria das pessoas são assintomáticas ou têm sintomas ligeiros” – verdade, corretíssimo. O que não se diz é que muitas destas pessoas vivem em condições sociais e de habitabilidade muito difíceis: transcrevo uma das anotações destes doentes que recorrem ao Serviço de Urgência do hospital com sintomas ligeiros, que fazem o teste, têm alta e aos quais damos posteriormente o resultado por via telefónica – “Informada do resultado do teste. Refere melhoria da sintomatologia e sem sinais de alarme. Reside com mais 6 pessoas em casa de 3 divisões. Num dos quartos está a utente com mais duas pessoas. Sem condições de habitabilidade para cumprir isolamento até nova indicação do Centro de Saúde/Delegado de Saúde. Realizados ensinos sobre medidas de prevenção e controlo de infeção. Explicados sinais de alarme e contacto em S.O.S.” Transcrevo o que se passa diariamente, dezenas de vezes. E qual a resposta atempada das autoridades de Saúde ou das estruturas da comunidade? Qual a resposta social de alojamento para estas pessoas? Raramente as temos. Entretanto, ficaremos com mais pessoas infetadas nestes núcleos habitacionais. E assim sucessivamente. Algumas pessoas serão idosas ou com comorbilidades e serão internadas no hospital, onde algumas virão a falecer. Outras irão continuar a propagar a infeção na comunidade, porque não vão cumprir o isolamento e nem sequer a isso serão obrigadas. Ainda hoje, a resposta da Saúde 24 para pessoas que tenham contacto próximo com outros infetados é apenas, “caso não tenha sintomas não tem de fazer o teste e pode continuar a trabalhar”, ignorando o papel de transmissão dos assintomáticos.
3 “Os internamentos nos hospitais mantêm-se estáveis” – verdade, certíssimo. Não dizem, contudo, que foram ativadas nos últimos dias inúmeras camas adicionais nesta região, nomeadamente pela transferência de doentes para outros hospitais, como o Hospital de Abrantes, o Hospital Militar, o Hospital Ortopédico de Santa Ana, entre outros, drenando casos COVID-19 dos hospitais da Grande Lisboa, para que os hospitais centrais possam continuar a dar resposta. Os hospitais da Grande Lisboa foram colocados novamente em estado de resposta emergente a COVID-19, com suspensão de atividade cirúrgica programada não urgente. Isto reflete a severidade da situação ao momento atual e que compromete desde já a resposta hospitalar de cuidados a doentes não COVID-19. Contudo, na comunicação social tudo se encontra tranquilo, os internamentos continuam estáveis.
4 Os cuidados intensivos estão a 65% da sua capacidade – verdade, certíssimo. Se contabilizarmos apenas o número de ventiladores e de camas. Aumentou-se muito, fez-se um enorme investimento em equipamentos. Mas os ventiladores não funcionam sozinhos e não há, de forma crónica, recursos humanos suficientes nos hospitais e muito menos com a formação adequada. Assim, de cada vez que, aos dias de hoje, tentamos transferir um doente ventilado, é o cabo dos trabalhos – nenhum hospital desta região tem vagas. A formação de médicos e enfermeiros nesta área é morosa e não se resolve com aquisições de ventiladores. Ignorar esta premissa é o mesmo que me colocar a mim, médica infeciologista, a fazer uma neurocirurgia. Posso ter os instrumentos, mas não saberei o que fazer com eles.
Falta nesta fase, e de uma forma muito clara, que o poder político assuma o problema e evite as mensagens dúbias: temos uma epidemia descontrolada nesta região e outras regiões do país poderão igualmente vir a estar em perigo. Todos somos capazes de o entender, se assim for enunciado.
Explique-se que a decisão de reabrir os centros comerciais, as ligações aéreas, os jogos de futebol e o turismo nesta área do país foi apenas e somente porque a economia está em risco. Explique-se que apesar de existirem medidas que visam minimizar a transmissão de infeção esta opção de abertura é arriscada à luz dos números e do índice de transmissibilidade nesta região. Torne-se pública a estratégia de resposta de saúde (comunidade e hospitalar) que está efetivamente a ser desenvolvida na Grande Lisboa.
A negação da evidência tem tido cada vez mais adeptos que publicamente vêm defender que tudo isto foi um exagero e um engano e assistimos, diariamente, a comportamentos da população que refletem esta sensação de segurança. Na nossa frente não está o arco-íris por mais coloridas e sorridentes que sejam as conferências de imprensa da DGS e Ministério da Saúde.