Os Pais colocam os seus filhos na Escola com a confiança de que esta promove e complementa o apoio ao seu desenvolvimento saudável. Aqueles que acompanham a Escola, em particular os que nela depositam muita esperança e boas expectativas, percebem bem a angústia, a ansiedade, a frustração, a injustiça, e até a indignação em relação ao sistema de avaliação e ao modelo de acesso ao ensino superior. O paradigma de acesso ao ensino superior em Portugal é injusto, ineficiente e inibidor.
Acesso ao ensino superior é injusto
Todos os anos muito se conjetura sobre as diferenças entre o sistema de ensino particular e o público, ou a qualidade do trabalho realizado no ensino profissional, criando um estigma sobre esta via de ensino. Muito se fala sobre a seleção dos alunos à entrada ou dos critérios de avaliação interna. No entanto, tudo isto é verdade e muito disto é falso e extrapolado. Partindo do pressuposto (irreal) de que não existem irregularidades, como conseguimos garantir que os critérios de avaliação interna entre escolas ou mesmo entre professores sejam equitativos? Como garantir equidade num sistema em que o ingresso no Ensino Superior depende, à milésima, da classificação interna? Equidade por todos tida como imprescindível, mas que na realidade todos sabem que não existe, mas quase todos preferem fingir que existe.
Sendo ainda a classificação final do secundário fator determinante para o acesso ao Ensino Superior, institui-se nas Famílias e nas Escolas a obsessão pelas notas, independentemente da qualidade das aprendizagens e do saber sustentado que os jovens alcançam, o que acentua os fatores de desigualdade e desvirtua a missão da Escola, enquanto instituição social potenciadora de equidade e de oportunidades. A obsessão pela nota (já quase uma cultura social) viabiliza, como todos sabem, às famílias com mais capacidade financeira vantagens face às demais, pelo recurso a outros meios que superam as fragilidades do sistema, por exemplo as explicações, as tecnologias, as enciclopédias, etc. Curiosamente, são também estas famílias que, se não conseguirem o seu objetivo, podem, com mais facilidade, optar pelo ensino superior privado, o que só por si constitui outra desigualdade.
Por todos estes motivos, este modelo baseado na classificação do Ensino Secundário é completamente injusto, não só pela diferença e suspeição entre sistemas educativos, mas também pela subjetividade das avaliações internas, pela diferença de meios à disposição dos jovens e porque se avalia à priori uma decisão posterior.
Acesso ao ensino superior é ineficiente
Se quisermos ser intelectualmente honestos e olharmos para alguns dados dos estudantes universitários percebemos, sem grande esforço, que algo está a falhar no acesso ao ensino superior e na “escolha” de um curso, muito condicionada pela classificação final do secundário. Que fique claro, não se trata de questionar os princípios da avaliação, mas sim os seus fins e as suas consequências. A avaliação é, ou deveria ser, antes de mais, um instrumento pedagógico de melhoria dos processos e das aprendizagens. Infelizmente, não é a isso que se tem vindo a assistir (a exceção são as avaliações feitas ao sistema como o PISA ou o TIMSS). Muito pelo contrário. A avaliação tem sido um instrumento privilegiado de seleção e segregação (exemplo são a percentagem e os resultados das retenções, ou a impossibilidade de progressão de estudos, sem que haja qualquer alternativa).
A seleção dos jovens no ingresso ao Ensino Superior, com base numa classificação obtida apenas pela avaliação de conhecimentos prévios, induz, muitas vezes, a opções erradas. Esta situação é agravada pelo facto de as faculdades reconhecerem e lamentarem que esses conhecimentos não vão ao encontro das competências que se pretendem desenvolver, o que só por si deveria ser suficiente para se repensar o paradigma de acesso ao ensino superior.
Algumas universidades, há pouco anos, concluíram que os alunos com classificações mais elevadas no ingresso têm um rendimento inferior aos que ingressam com classificações entre 13 e 16. Ou seja, um bom aluno na universidade não é necessariamente aquele que no secundário teve notas de 19 ou 20. Não raras vezes, um estudante de 14, 15 ou 16 é melhor não só na universidade, como também na vida profissional.
Sabe-se que 40% dos estudantes que entraram na 1ª opção do curso desistem ou mudam de curso e cerca de 80% fazem-no na 2ª opção. Quanto representará isto em termos financeiros para as famílias e para o erário público e, sobretudo, que consequências imprevisíveis terá na vida desses jovens? Cerca de 8600 dos estudantes, inscritos pela primeira vez no ensino superior, em 2011, abandonaram o sistema um ano depois (Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência). A proporção da população com ensino superior é sensivelmente inferior em 7%, quando comparada com a média europeia (36,8%).
Há também estudos que indicam que, em média, apenas 17% dos estudantes universitários são alunos de sucesso (aqui definido como a conclusão do curso no tempo previsto) e apenas 7%, se nos cingirmos ao curso de medicina. Seria interessante e muito útil poder conhecer ou consolidar o que nos mostram estes dados. Com alguma frequência, ouvem-se jovens a lamentarem não gostar do curso que frequentam ou da atividade profissional que desempenham, pelo facto da opção ter sido tomada com base na média obtida.
Apesar de nem tudo ser mau, a vida dos nossos jovens, o nosso futuro enquanto país evoluído exigem-nos o dever de agir e melhorar uma situação insustentável.
Acesso ao ensino superior é inibidor
O facto da avaliação final do Ensino Secundário ser determinante para o acesso ao Ensino Superior torna este sistema inibidor para as famílias e para as Escolas. Coloca uma pressão que leva muitas Escolas, cada vez em anos académicos mais precoces, a interromperem os seus projetos educativos para fazerem treino e só treino para exames, em nome da NOTA.
Este modelo de acesso ao ensino superior, baseado na classificação do ensino secundário, faz com que as famílias e as Escolas se foquem na nota e desvia-as da responsabilidade de identificar os percursos escolares com maior potencial de realização pessoal e de conseguir equidade na formação dos jovens. Um dos exemplos mais recentes foi a reduzida adesão das Escolas à proposta de flexibilização, sendo esta quase nula ao nível do secundário. Isto aconteceu, temos que o assumir sem rodeios, pelo receio da nota e das suas consequências no acesso ao ensino superior.
Os jovens, sem tempo para viver a sua juventude, abandonam as suas atividades desportivas, artísticas, musicais, quando deveria ser a Escola a incentivar e a proporcionar a prática destas atividades, tão essenciais ao desenvolvimento físico como, cognitivo e emocional. Tenho a certeza de que não são precisos números de estudos para que a maioria das famílias perceba exatamente o que acabo de afirmar.
Se não se repensar e alterar o nosso modelo de avaliação e o paradigma de acesso ao ensino superior, não conseguiremos permitir à Escola o trabalho de qualidade na Educação das nossas crianças e jovens.
É urgente encontrar uma alternativa
Professores e diretores, políticos e famílias, todos estão conscientes de que algo no sistema de avaliação, e particularmente no acesso a ensino superior, tem que mudar. Muita coisa se alterou ao longo dos anos, as crianças e os jovens são diferentes, os meios evoluíram e por isso o sistema está obsoleto. Universidades, Escolas, Pais e políticos têm o impreterível dever de debater a situação para se conseguir um sistema mais justo, mais eficiente, mais democrático e que proporcione a todos os jovens o acesso ao ensino superior de acordo com as suas expectativas e as suas capacidades.
Infelizmente quase todos esperam pelos outros. Particularmente as famílias, que são as principais interessadas, têm que perceber a relevância da sua (in)ação. As universidades vão continuar a ter alunos, mesmo que não sejam os de perfil mais adequado, as escolas continuarão a existir e a proporcionar empregos, mesmo que se situem numa avaliação medíocre face às demais e também não será este sistema que provocará uma qualquer alteração politica, ainda que a abstenção atinja a maioria.
Como dizia o nosso Presidente da República, as pessoas quando votam preocupam-se com o emprego, a economia, o serviço social e de saúde, mas não com a Educação. O grave disto é o cidadão não perceber que a Educação está na base de todos os outros sistemas da atividade económica e social, como concluiu Frederico Cantante ao indicar como a principal causa do atraso da economia portuguesa a falta de formação das chefias e dos patrões.
Teremos, com certeza, a capacidade de questionar porque será Portugal, no século XXI, o único país ocidental (que eu conheça) em que a classificação do ensino secundário é determinante no acesso ao ensino superior? Porque não fomos ainda capazes de evoluir? Que lóbi é tão forte que inibe a necessária coragem para se fazer o que urge fazer-se?
Algumas pessoas, acomodadas com a atual situação, argumentam com dificuldades de diversa ordem. Acredito que nada é definitivo e que pouco se pode ter por adquirido, pelo que é desejável o debate e desde já deixo algumas sugestões de discussão. A avaliação do secundário deve ser terminal e certificante e pode servir de referência. Para os que dizem que os estudantes teriam que percorrer o país para fazerem exames em todas as faculdades a que se candidatassem, também não será verdade, pois as faculdades de curso idêntico podem (e já existem) fazer convénios para que os candidatos possam realizar essas provas na instituição mais próxima da sua residência. Quanto às faculdades aceitarem apenas os “amigos” também sabemos que esse seria um caminho suicida para a própria instituição, pois a qualidade e produtividade do seu trabalho depende muito dos seus estudantes.
Todos o sabem, mas falta-nos curiosamente a coragem para agir. As famílias (cerca de 3 milhões de cidadãos com crianças e jovens nas escolas) podem e devem exigir a mudança. Melhor Educação e menos currículo. A Escola tem que se constituir, definitivamente, como a instituição que se funde e complementa com a família na Educação das crianças e dos jovens.
As Escolas e as famílias não podem continuar condicionadas pela necessidade de obter uma nota (cultura da nota/classificação) e negligenciar a importância das competências e das atitudes. No final do ensino secundário conclui-se um ciclo de estudos que, podendo ser uma referência para o acesso ao ensino superior, deve ser independente do mesmo, contribuindo, assim, para o desenvolvimento de um trabalho essencialmente centrado na qualidade das aprendizagens.
Se promovermos um sistema conclusivo e que permita uma certificação de estudos, deixando para o sistema de ensino superior a decisão (prevista na lei, diga-se) de ingresso dos seus estudantes, com base em critérios previamente definidos e divulgados, estaremos a contribuir, de forma decisiva, para o fim de muitas suspeições sobre a avaliação do ensino secundário e sobre a qualidade dos sistemas de educação básica e obrigatória.
Se pensarmos assim a Educação, se fizermos assim, talvez tenhamos uma possibilidade enquanto país e enquanto sociedade, porque a Educação é, além do pão, um bem essencial e basilar na construção do ser humano. É o que nos distingue!
Presidente do Conselho Executivo da CONFAP – Confederação Nacional das Associações de Pais.
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.