Foi um primeiro-ministro de um Governo que beneficiou muito dos fundos europeus e que, ao mesmo tempo, os desperdiçou. Que confundiu o Estado com o partido. Que protegeu ministros que o país já não tolerava. Que teve confrontos sindicais graves. Que usou os funcionários públicos e os reformados como triunfo político, fazendo dos orçamentos arma de luta partidária. Que de alguma maneira abriu caminho político a uma série de gente mais ou menos delinquente. É curioso como quase todas as críticas que regra geral se apontam a Cavaco Silva fazem ricochete em António Costa. Não importará referir as evidentes diferenças de personalidade entre ambos. As diferenças entre os dois são conhecidas. Mas, de certo modo, e para resumo, António Costa é como que uma espécie de Cavaco Silva em versão lado lunar, porventura mais cínico e bonacheirão.

Curiosamente, ambos foram indigitados chefes de Governo depois de um período de intervenção externa e austeridade. É verdade que Cavaco Silva foi o primeiro-ministro, em democracia, que mais sucessos económicos teve para apresentar. Sob certa perspectiva, necessariamente unidimensional e monofocal, terá mesmo sido o melhor primeiro-ministro que o país teve em 50 anos. Sucede que isso é, por si mesmo, um problema. António Costa tinha o dever de ter destronado Cavaco pelo menos num ponto: tirar o país de um buraco. Não conseguiu, nem conseguirá.

Porque a grande diferença entre eles é que Cavaco tinha, mal ou bem, uma ideia de país, e Costa tem apenas uma ideia semi-juvenil de poder. Por isso mesmo, Cavaco deixou, em 1995, um país economicamente muito diferente, para melhor, do que tinha recebido em 1985; e António Costa, com grande probabilidade, deixará um país em 2026 (se o deixar) praticamente no estado em que o recebeu em 2015. Nem bem, nem mal, antes pelo contrário, comparativamente mais pobre, alegremente não ainda miserável.

São, no fim de contas, duas versões do homo portucalensis, espelhos fiéis de duas estereotipadas formas de ser cidadão deste país. E talvez isso baste para justificar a sua durabilidade. Nenhum outro primeiro-ministro foi tão parecido com um certo espírito nacional como Cavaco, de uma forma, e Costa, de outra. E isso, entre outros factores, ajudou-os a prolongarem-se no tempo. Cavaco, depois de governar 10 anos, conquistando duas esmagadoras maiorias absolutas, candidatou-se à presidência da República (saiu derrotado, mas teve mesmo mais votos do que o popularíssimo Marcelo Rebelo de Sousa teve em 2016, na sua primeira eleição) e acabou por ser eleito duas vezes à primeira volta. E António Costa, a caminho dos 10 anos de Governo, continua a ser o único seguro de vida de um Governo que, de acordo com sondagens recentes, não tem um único ministro apreciado pela maioria das pessoas.

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O actual primeiro-ministro é uma garantia. A única, aliás, que o PS tem para apresentar. Só isso explica que se tenha mesmo plantado uma notícia no Expresso, na fase de alucinação dissolvente de Marcelo, para dizer que se o presidente resolvesse deitar tudo abaixo, ele, António Costa, ali estaria novamente para ganhar eleições. Porque sabe que as ganharia, e provavelmente ganhará, se quiser, quando em 2026 formos chamados novamente a deitar o votozinho na urna.

O país é hoje substancialmente diferente do que era em 1995. Menos exigente, mais imobilista, mais conformado e mais dependente, também porque é hoje um país mais velho e, ao mesmo tempo, mais aberto ao mundo, o que facilita a saída de quem ambiciona mais do que isto. Porventura em consequência desta realidade, dizem as sondagens e quem aparenta perceber alguma coisa de política (não é, de todo, o meu caso) que os portugueses apreciam a estabilidade. E eu acredito. Sucede que a estabilidade a que tantos se referem é hoje a segurança que só a mediania pode proporcionar. Qualquer pocilga é estável se não incomodarmos os residentes. E António Costa sabe como ninguém manter esta paz de pântano.

A direita pode observar tudo isto e, percebendo que não consegue derrubar o homem que melhor encarna a vontade maioritária do país, decidir esperar por um momento em que Costa se canse e vá à sua vida. Com grande probabilidade, nessa altura assistiremos a mais um maravilhoso momento de alternância, de evolução na continuidade, de perpetuação da estabilidade tão apreciada. Mas quem quiser, de facto, aspirar a viver num país diferente, não pode esperar pela «mesmice» e pela substituição de Costa por outro, mesmo que vindo do PSD. O combate político que realmente está em causa não são as europeias, as legislativas ou as presidenciais. É uma luta na sociedade, no quotidiano, nos corpos intermédios, e de um projecto político popular, que não existe ainda, que represente o país que ainda ambiciona e quer resistir. É por aí que se construirá um país diferente. Até agora o que temos decidido fazer, por razões mais do que justificáveis, tem sido a emigração, em busca do tal país diferente que podíamos ser e não somos, e uma espécie de atomização política. Mas talvez seja tempo de começarmos a ambicionar algo mais e passarmos a educar os nossos filhos, não para emigrar, mas para ficar e resistir à mediocridade. E de voltarmos a estar disponíveis para o combate político, mesmo no ringue viciado que se conhece.