Quando a nossa papelaria faliu segue-se o opróbrio; e quando matamos ou esfolamos espera-se a reintegração na sociedade. Das possibilidades de regeneração não nos cabe completamente ajuízar; mas impressiona a severidade para com desaires comerciais de terceiros, que em última análise costumam depender de causas veniais e erros de cálculo. E impressiona o modo como geralmente se acredita na ideia de que um crime possa ser pago, se não a pronto pelo menos a prestações.
Parece uma questão de sensatez desejar que o dono da papelaria possa recuperar depressa do seu desaire e, com o seu dinheiro, ou com aquele que arranjar por meios legais, tomar juízo ou melhorar a sua sorte e a dos outros. Pelo contrário, a convicção geral segundo a qual desaires de morte e esfolamento, passado um certo período de quarentena, desaparecem sem deixar rasto, é irrazoável. As convicções gerais, porém, não se corrigem por via legislativa, por exemplo tornando mais lenientes as leis sobre falências, ou tornando mais furiosas as penas para crimes de sangue. Nenhuma destas duas soluções, cujos méritos aliás não são equivalentes, contribui só por si para esclarecer a dificuldade maior: pagar pelos nossos erros é fundamentalmente diferente de pagar uma dívida; uma dívida pode ser o resultado de um erro; mas um erro não é uma dívida.
A liberalidade com que imaginamos que, salvo em questões comerciais, é sempre possível começar de novo vem de imaginarmos que mortes e esfolamentos são, na ordem geral das coisas, mais dignos de comiseração que azares contabilísticos; mas vem sobretudo de uma ideia sobre pessoas que assenta na noção de que uma pessoa, desde que não se dedique a actividades económicas, pode, de modo deliberado, mudar completamente; e que ao mudar completamente não apenas passa a ser outra pessoa como deixa de ser a pessoa que era até ter mudado; e que ao deixar de ser quem era cessam todas as responsabilidades, todas as opiniões; e até pode mudar de aspecto.
O argumento não é um argumento, que seria exagerado, contra a ideia de que as pessoas podem mudar, e por deliberação própria: podem, e às vezes devem; e outras vezes ainda têm. É um argumento contra a ideia de que ao longo da vida de um certo animal podemos ser várias pessoas, separadas por momentos de amnésia; e contra a ideia fantasiosa de que a vida consiste em começar de novo cada vez que nos ocorre essa ideia. Nem todos os animais são pessoas; mas a duração de uma pessoa tende a coincidir com a da vida de um animal. A ideia de começar de novo é fantasiosa porque ignora o modo como um crime cometido nos pode acompanhar mesmo muito depois de sairmos da prisão; e uma promessa, muito depois de ser cumprida; e a tristeza de ter sido Jorge, muito depois da alegria de ser agora Amélia.