Parece que existe há muitos anos uma guerra entre a Comissão Nacional de Eleições (CNE) e o Resto do Mundo a respeito da afixação de propaganda política no espaço público pelos partidos.

Sempre que um partido político instala (enormes) cartazes de propaganda, sem qualquer respeito pela lei e regulamentos em vigor, vem a CNE, mesmo fora de períodos eleitorais, alegar que estão no seu direito e que o fazem ao abrigo da liberdade de expressão e manifestação expressa no artigo 37º da Constituição: “Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio (…)”. Sublinho a palavra “Todos”, que inclui obviamente os partidos políticos, mas não exclui todos os “Outros”, sejam eles pessoas singulares ou colectivas.

Nos pareceres que vem proferindo, pelo menos desde 1989, a CNE defende orgulhosamente que, além do artigo 37º da Constituição, não existem, nem podem existir, quaisquer outras normas que regulem a liberdade de expressão dos partidos políticos. Em resultado desse entendimento, desconsiderando a legislação em vigor, para além da Constituição, como a Lei 97/88, a CNE conclui que nenhuma entidade pública, com excepção dos tribunais, pode intervir e tomar decisões que impeçam ou limitem a colocação de cartazes de propaganda política ou a sua remoção do espaço público.

A CNE, apesar de reconhecer a existência dessa Lei 97/88, não lhe dá grande importância, tratando-a como uma indesejada ingerência nas suas competências. Não considera sequer efectivo o direito que essa lei confere às Câmaras Municipais de regulamentação da afixação de propaganda nas áreas dos respectivos concelhos. Nem a aplicação de coimas e o poder de instaurar processos de contra-ordenação contra os partidos políticos pelas Câmaras Municipais, que inclui a remoção, por exemplo.

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Nem considera ainda que as Câmaras Municipais, que têm a competência para administrar o domínio público municipal, atribuída pelo regime jurídico das autarquias locais, podem impedir que esse uso público se transforme num exclusivo de alguns, como acontece quando os partidos políticos plantam cartazes gigantescos de 4 x 12 metros em qualquer lado.

Sem se preocupar sequer com a segurança e conforto de todos os que usam o espaço público todos os dias. Sim, porque as estruturas que suportam os cartazes têm requisitos técnicos de instalação e sustentação no solo e de equilíbrio face ao vento, por exemplo, que colocam em risco todas as pessoas e os veículos que circulam nesses espaços. Por algum motivo a implantação de cartazes publicitários está sujeita a termos de responsabilidade assumida por técnicos com competência na matéria.

Não há como defender a todo o custo a liberdade de expressão dos partidos políticos prevista no artigo 37º da Constituição, como se a livre plantação de cartazes no espaço público fosse o único meio de propaganda disponível, como se os partidos tivessem de fechar a sua actividade se não o pudessem fazer. Como se o espaço público não tivesse regras de utilização para todos e também para os partidos. Não é pelo facto de o direito à habitação estar previsto na Constituição que alguém pode montar um acampamento na Avenida da Liberdade…

A CNE ainda vive no tempo em que os partidos políticos colavam cartazes nas paredes dos prédios, nos muros públicos e privados, em todo o lado, em suma. Os meios de propaganda eram essencialmente esses e também as chamadas bandeirolas, que eram penduradas em candeeiros públicos ou mesmo nas árvores.

Essas práticas dos partidos políticos eram sustentadas em pareceres da CNE, que defendia que não existia legislação limitadora da liberdade de expressão sobre essa matéria para as autoridades poderem intervir. O que passava ao lado do problema, porque as câmaras municipais já detinham essa competência de administrar o domínio público municipal. Domínio público que, por definição, é um espaço que pertence a todos e não é exclusivo de ninguém em particular.

Mas, para clarificar, em 1988, com a entrada em vigor da Lei 97/88, essas colagens selvagens de cartazes acabaram a partir do momento em se passou a exigir as autorizações dos proprietários para as fazer. E, com uma alteração da Lei 97/88 em Abril de 2011, caiu também o uso das chamadas bandeirolas (faixas pendentes), por causa da proibição que foi então imposta de não utilizar materiais não biodegradáveis na afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda. Sendo as bandeirolas de plástico, foi decretado o seu óbito em 2011.

No entanto, estávamos sempre no campo da utilização temporária de meios de propaganda. Só que, em reação às limitações que a lei veio impor desde 1988, os partidos políticos evoluíram para outro tipo de propaganda, ainda mais abusiva. Deixaram de lado as colagens de cartazes nas paredes e as bandeirolas de plástico e passaram a plantar painéis de 4 x 3 metros ou mesmo de 12 x 3 metros na via pública, nos jardins e nos passeios. Montando gigantescas estruturas de ferro, furando o solo e as calçadas, sem dar cavaco a ninguém, e muito menos às câmaras municipais. Desafiando mesmo as câmaras municipais.

E estas instalações nem se têm limitado aos períodos de campanha eleitoral. Passaram da utilização temporária para a utilização permanente. Ficam para sempre, ocupando exclusivamente espaços que são públicos e que assim deixam de o ser, não podendo ser usados por mais ninguém. Com riscos de segurança evidentes. Com total indiferença pela estética, pela arquitectura, pelos monumentos, pela paisagem urbana, pelo ambiente, em geral. Com total desprezo pelos gestores do espaço público que são as câmaras municipais.

Mas também com o apoio incansável da CNE, que continua a defender que não existe lei, nem regulamentação, nem pode existir. Que as câmaras municipais, apesar de poderem aplicar coimas pela violação da Lei 97/88, de poderem remover esses painéis instalados no espaço público, não podem fazer nada, nem sequer defender o espaço público da sua usurpação a favor de uns e em detrimento de todos os outros.

Tem havido alguma timidez das câmaras municipais na reação contra estas posições de alguns partidos políticos e da CNE – e o Tribunal Constitucional também não tem ajudado –, quando se verifica uma falta de regulamentação da Lei 97/88, com preferência pelo estabelecimento de gentlemen’s agreements com os partidos políticos. Enfim, sem vontade para enfrentarem com vigor e rigor estes abusos da liberdade de expressão e para defenderem o uso do espaço público por todos e não apenas por alguns.

É tempo de voltar a defender a cidade e o espaço público. A Câmara Municipal de Lisboa tomou uma atitude recente nesse sentido, ao mandar remover todos os cartazes colocados no Marquês de Pombal e no Parque Eduardo VII. Mas a cidade continua invadida pelos cartazes, seja no Saldanha, na Av. da República, nos Jerónimos, no Jardim Zoológico, na 24 de Julho, ou no Largo do Rato. Em todo o lado, desde que haja visibilidade.

É tempo de concluir a intervenção. O espaço público tem de ser preservado e defendido da utilização exclusiva por alguns, sem regras. As câmaras municipais podem e devem agir em defesa da disponibilização e utilização do espaço público por todos, em segurança e com respeito pelos princípios mais básicos do bem-estar colectivo. Os partidos políticos não estão acima da lei e não são donos do espaço público, mesmo que a CNE pense o contrário.

NOTA: Em 1988 tinha acabado de fazer 30 anos e trabalhava na Câmara Municipal de Lisboa como assessor jurídico da presidência. Com a entrada em vigor da Lei 97/88 foi-me confiada a regulamentação da Lei 97/88. No ano seguinte, fizemos aprovar um regulamento de execução na Assembleia Municipal, com o voto de favorável de todas as forças políticas, menos uma. Convocámos os partidos com existência legal para lhes explicar a nova realidade e as nossas intenções. Testámos esse regulamento na campanha para as eleições europeias de 1989. Mandámos fazer e instalámos em todas as 53 freguesias quase mil painéis amovíveis para afixação de propaganda, disponibilizando e sorteando entre todos os concorrentes esses espaços. Corrigimos o que achámos que devia ser corrigido e voltámos a aplicar a lei durante as eleições autárquicas desse ano. Instaurámos processos de contra-ordenação e aplicámos coimas nos pouquíssimos casos de violação da lei e do regulamento. Alguns destes processos foram impugnados pelos partidos visados e seguiram para tribunal. Em 1990, depois da tomada de posse dos novos órgãos da autarquia, com uma maioria composta por outros partidos, foi decidido desistir dos processos de contra-ordenação pendentes. O regulamento municipal de 1989 foi revogado em 1992, de uma forma muito pouco frontal, aprovando um novo regulamento sobre publicidade e revogando tacitamente a parte sobre propaganda. Desde então, apesar de terem passado pelo executivo municipal quase todos os partidos políticos, não voltou a tratar-se deste assunto e a propaganda selvagem nunca parou de aumentar, passando de temporária a permanente. Até quando?

Para ouvir durante a leitura: “I Remember Everything”, John Prine