É fácil transformar um filho numa pessoa com menos saúde mental. Na verdade, é mesmo mais fácil do que todos imaginamos. Dir-me-ão que, se olharmos para as nossa vida mental, também nós temos as nossas pequenas coisas. E é verdade. Mas, em relação a eles, há um salto gigantesco entre o período em que nos dedicamos a ler-lhes os olhos e nos preocuparmos que sorriam, como se com isso nos dissessem que estão bem e são felizes; e o modo como, mal entram na escola, somos engolidos por uma engrenagem em que nos fogem das mãos e em que os sinais que nos dão parecem nunca ser suficientemente importantes até à altura em que, finalmente, têm dificuldades escolares e tudo pára.

O mais inquietante, no meio disto tudo, é a forma como vamos, silenciosamente, escorregando dos distúrbios emocionais da infância para a forma como os nossos filhos se afastam da saúde mental. Como se tudo se passasse, silenciosamente, um pouco como com as doenças cardiovasculares. Primeiro, quando dão sinais que não estão tão bem como todos desejaríamos (o que nos leva, um ror de vezes, a perguntar se isso é defeito ou feitio). A seguir, na adolescência, quando os grupos de iguais e as redes sociais pagam as favas da forma como o seu comportamento sofre mudanças abruptas, que levam a que os pais, de maneira bondosa mas perigosamente, se adaptem a eles. Depois, quando tomamos a entrada na universidade e a juventude como áreas que os influenciam e os tornam mais egocêntricos, menos nossos e, sobretudo, com aquilo que eram vícios de forma a transformarem-se em constantes do seu comportamento e em perturbações de personalidade. E finalmente, quando a engrenagem dos primeiros empregos e outros acontecimentos de vida fazem com que ecludam episódios mais exuberantes de doença mental. Que, devagarinho, se vão instalando sem volta à vista.

É claro que estamos, ainda, muito habituados a ver a doença mental como uma doença psiquiátrica. Nas vizinhanças da loucura. Esquecendo-nos nós que quanto mais as pessoas são escolarizadas mais a doença mental parece disfarçável. Não se reparando que as perturbações de personalidade são doença mental. Umas, compensadas com consumos de álcool, de alimentos ou de drogas, por exemplo. Outras, com relações amorosas e familiares doentias. Muitas outras, com relações workaholics com o trabalho. E outras, ainda, com um controle exacerbado, que faz com que inúmeros quadros médicos (das doenças cardiovasculares, à dermatologia ou à gastroenterologia, por exemplo) sejam doença mental que, aos poucos, se foi somatizando, de forma irrevogável.

Seja quando for, quando os nossos filhos são mais pequenos, nada tem este colorido tão exuberante. Porque são mais pequeninos. E porque estamos muitíssimo mais atentos ao seu comportamento. Por mais que, por exemplo, quando entram num infantário e ficam muito aflitos, eles tenham, transitoriamente, muito mais episódios inflamatórios.

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Mas ninguém nasce doente mental. Nem os nossos filhos. Nem nós. Mas a forma como fomos educados; o modo como fomos sendo (tantas vezes, de forma acidental) expostos a circunstâncias de vida que nos foram condicionando, progressivamente; os nossos próprios traumatismos, que funcionam como nódoas difíceis que nos acompanham e que, muitas vezes, nos limitam; e a maneira como as pessoas à nossa volta se foram tentando, bondosamente, adequar às nossas dificuldades — por mais que, com isso, as tenham fixado e acentuado um pouco mais — tudo contribuiu para sermos como somos.

A grande diferença, hoje, é que os pais — e bem! — tentando minimizar esses riscos, quando sentem que um filho dá sinais de que a sua saúde mental estará mais ou menos “constipada”, recorrem a ajuda psicológica. A intenção é clara: eles pretendem perceber os motivos pelos quais eles estarão mais ou menos mal e a forma como possam estar a contribuir para isso, de modo a que as situações se revertam e eles sejam devolvidos à saúde mental. Com a certeza que mais saúde mental puxa mais saúde mental. Seja como for, não é porque “todas” as crianças da classe média estejam em acompanhamento psicológico que elas serão, hoje, mais saudáveis. Algumas dessas criança necessitam de acompanhamentos criteriosos, sim. Mas muitas precisam que os pais conheçam melhor a natureza dos seus sinais de alerta. E aprendam a lidar com eles. Sem nunca perderem de vista que por trás dum criança difícil esta sempre um adulto em dificuldades.

Mas voltemos à forma como é fácil que os nossos filhos se afastem da saúde mental. Para além de todas as coisas pessoais que os condicionam, sobretudo depois da pandemia, a regulação da relação dos nossos filhos com o telemóvel foi deixada ao seu próprio cuidado. Quer em relação ao tempo de consumo ou às redes sociais pelas quais eles circulam. Como a propósito dos “amigos” com quem interagem. Como se, para efeito do código civil, eles se tornassem maiores aos 18, mas na relação com os telemóveis o fossem aos 9, aos 10 ou aos 11 anos. Mas se aos telemóveis associarmos as horas exageradíssimas de trabalho diário que vão tendo (muitas vezes, das 8 às 8); sem recreios que entrecortem de forma significativa as aulas (sobretudo) expositivas que têm; sem actividade física relevante e com níveis de sedentarismo alarmantes; sem tempos familiares muito representativos e sem relações sociais que sejam presenciais e frequentes; e com tempo livre e tempos para brincar cada vez mais exíguos, tudo isso, associado à relação que têm com as redes sociais representa um cocktail fora do vulgar para que os nossos filhos se afastem da doença mental. É fácil tornarem-se doentes mentais! Mas se a todas essas contingências com que eles convivem juntarmos uma certa ideologia do momento, em que a autoridade dos pais parece submersa por um populismo parental que os limita em relação aos seus nãos, tudo fica mais difícil.

E mais difícil se torna quando os sinais de saúde mental em desequilíbrio que eles nos dão nos chegam de formas diversas. E que vão desde a baixa auto-estima, aos défices de atenção com hiperatividade, às dificuldades de concentração, aos episódios depressivos, aos estados de pânico ou à exposição a experiências de bullying (cada vez mais frequentes, mais cruéis e mais precoces). Os sinais de apelo dos nossos filhos em relação ao modo como sentem a sua saúde mental desequilibrada multiplicam-se e a nossa insegurança como pais em relação à gestão de tudo isso parece não ter fim. Sendo vulgares os desabafos de mães que, de forma aflita, depois de já terem tentado tudo, reconhecem não saber o que fazer (depois de cruzarem informação contraditória de pediatras, psicólogos, coachs, influencers, tutoriais, sites, livros de autoajuda, etc.).

Acresce que as crianças brincam cada vez menos, e isso é trágico. Por mais que “brinquem” cada vez mais horas por dia com o telemóvel; e isso é alarmante. Mas a sua saúde mental não está em perigo só por isso. Nem só porque os conteúdos que lhes são trazidos pelos algoritmos se centrem em desafios perigosíssimos e na pornografia que chega, sem aviso prévio, aos adolescentes. Ou pelas discussões fora de tempo sobre identidade de género, sobre o corpo, os regimes alimentares, a beleza, os comportamentos auto-lesivos, a depressão ou o suicídio que se banalizaram junto das adolescentes. A sua saúde mental está em perigo não só quando eles, em consequência do stress com que vivem vão manifestando menos autonomia, mais perturbações da atenção, menos tolerância à frustração, mais irascibilidade, mais ansiedade, mais depressão e menos inteligência. Ela está  em perigo se nós, como pais, não tomarmos medidas claras que os protejam desta cascata de riscos que se entrecruzam na vida deles. Se não estivermos atentos a que eles precisam de ter uma vida para além daquilo que se passa na escola. Que precisam de tempo livre e de brincar. De ir errando e de falhar. Que precisam de pais muito activos junto das escolas, sempre que — seja pelos níveis de exigência insensatos, pelas derrapagens pedagógicas que elas tenham como pelos episódios de bullying com que pactuam demais — elas falhem, repetidamente. E de atividade física e desportiva regulares. E de não estar tão sozinhos e de ter compromissos cívicos e associativos. E precisam  de não ser tão medicadas com psicofármacos. E de pais que se reinventem como pessoas de cada vez que se reinventam como melhores pais. Não pactuando com atitudes egocêntricos que só mascaram a sua insegurança junto dos outros. Nem com tiques de ”pequenos ditadores” que muitas crianças já vão tendo, desde muito pequeninas. Nem com mudanças súbitas de estilo de estar, de vestir, de vocabulário ou de comportamento. Nem com fugas aos tempos e ao convívio familiares. Nem com a imposição que tentem ter em relação ao toque ou à distância corporal e emocional. Nem com a forma como os trazemos para os nossos sonhos e os afastamos dos deles.

Hoje são precisos pais que sejam, ainda, melhores pais! Sem os quais os nossos filhos serão mais educados, mais escolarizados mas mais ansiosos, mais inseguros e, potencialmente, mais “desequilibrados”. E amanhã, mais tarde ou mais cedo, passem dos sinais com que se foram afastando da saúde mental para as perturbações da personalidade e delas para a doença mental. E tudo começou com os sinais que eles nos deram, desde muito cedo, e que, por distracção nossa, não foram logo tão valorizados como deviam.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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