Talvez por não ter resistido à beleza da capa amarela com o título manuscrito da nova edição da Porto Editora ou por outro qualquer desígnio decidi ler «O Ano da Morte de Ricardo Reis». A escrita de José Saramago embala desde a primeira página pela criatividade e qualidade da forma. Porém, quanto mais se avança na leitura mais se esboroa o valor intelectual do conteúdo. Isso pela impossibilidade de desfiliar a narrativa de certos traços políticos demasiado óbvios do contexto em que foi originalmente publicada: 1984. Tal facto cruza o livro de José Saramago com a premonição de George Orwell revertida no título do seu livro. «Mil Novecentos e Oitenta e Quatro» tipifica a manipulação da linguagem no duplo sentido em que o manifesto verbal tem uma relação inversa com o resultado prático da ação.
«O Ano da Morte de Ricardo Reis» joga numa variante dessa duplicidade: anuncia-se como ficção com contextualização histórica, porém faz um inverso. Retrata a Península Ibérica nos anos de 1935-1936. Entre inúmeras possibilidades de escolha, a máquina cultural ultra seletiva do estado difunde ativamente «O Ano da Morte de Ricardo Reis» pelo suposto valor intelectual e cultural, isto é, não estamos perante um objeto menor na construção da memória coletiva dos portugueses.
Ressalvo, todavia, não estar em causa a falsificação de factos históricos. Mas é justamente porque José Saramago os trata com rigor que não é tolerável que sejam conjugados com propósitos de adulterar o sentido do tempo histórico. Para isso, importa insistir na data da publicação original d’«O Ano da Morte de Ricardo Reis»: 1984.
Vivia-se no contexto da guerra fria (1945-1991) e, à época, era impensável a implosão da URSS, ainda que a pátria-mãe do comunismo se afundasse numa crise, mas que se assemelhava a uma pausa para regeneração após o auge da superpotência soviética na década de setenta. O paralelo com a superpotência rival justificava-se. Os EUA tinham atravessado uma crise profunda na década anterior condicionada pelo primeiro choque petrolífero (1973), pela derrota na guerra do Vietname (1973) e pelo escândalo do Watergate (1972-1974). Todavia, na década de oitenta, os EUA estavam de regresso ao papel de liderança no sistema internacional profundamente regenerados.
Portanto, o livro é produto de um contexto em que permanecia intacta a crença numa URSS que poderia reinventar-se, apesar de atolada na guerra do Afeganistão (o Vietname soviético) e da enorme discrepância entre o seu poderio militar e político e as profundas debilidades de uma economia estagnada pelo comunismo. A crença no ideal é transportada com tal intensidade para o livro a ponto da construção ‘ficcional’ ficar dominada por propósitos idênticos aos do filme «A Revolução de Maio» (1937), obra propagandista do regime de Salazar, realizada por António Lopes Ribeiro, ridicularizada n’«O Ano da Morte de Ricardo Reis» (1984). Contudo, o efeito literário tentado por José Saramago resulta num jogo de espelhos. Num e noutro caso, a ficção serve de escudo a ambições ideológicas panfletárias cujo valor intelectual e cultural é quase nulo, por muito que os formatos se escondam em muitas imagens, palavras ou enredos.
O que move uma e outra ficção é a conversão dos descrentes, por via de uma relação amorosa improvável entre os protagonistas, a um amor profundo a uma causa maior inicialmente rejeitada pelo lado masculino. Este enredo simplório tanto visa a conversão dos descrentes às virtudes da governação de Salazar (‘fascismo’), como às escolhas políticas não menos virtuosas de Saramago (comunismo). O que distingue o último é ter necessitado de mais de quatro décadas, de muita investigação de arquivo (sobretudo da imprensa), de um interminável arrazoado de 494 páginas e de uma grande ausência de pudor na artimanha da evangelização póstuma de uma das maiores (senão mesmo a maior) figura intelectual portuguesa do século XX, Fernando Pessoa, para pagar na mesma moeda à «A Revolução de Maio».
Para os que continuam e continuarem vivos, substantiva é a diferença entre a saúde mental de não ambicionarem salvar do ridículo a propaganda política de um filme de 1937 comparativamente à indigência mental de fazer ascender a propaganda política em livro de 1984 à categoria de obra-prima, peça essencial que justificou a atribuição do Prémio Nobel da Literatura em 1998, portanto, após o colapso da URSS em 1991. A decisão da academia sueca conferiu a um extenso panfleto político rudimentar a dignidade de ser ensinado em universidades e escolas, por várias gerações, como suprassumo da lucidez intelectual. «Mas julgaes que n’isto se resume a litteratura portugueza? Não! Mil vezes não!» – escreveu José de Almada Negreiros em 1916-1917.
Em 1984, com a pátria-mãe do comunismo intacta, tal como as certezas num rumo da história que faria eclipsar o ideário ocidental capitalista decadente, José Saramago permite-se ironizar, recorrendo a estereótipos, sobre os comunistas com intuito de tornar óbvio o injustificado ridículo das críticas ao comunismo na época de Salazar. A questão é que o tempo está a transformar as ironias de 1984 num tiro que sai pela culatra. Entre os anos da escrita e a atualidade, por um lado, o comunismo sofreu um cataclismo e, para desgraça do autor, quem ler o livro no contexto do século XXI terá razões de sobra para fazer interpretações literais sobre o ridículo do comunismo que José Saramago esconde a coberto dos ridículos dos regimes conservadores da época. Por outro lado, hoje a relação dos europeus ocidentais consigo mesmos não é a mesma dos anos oitenta. Daí resulta uma erosão significativa da construção intelectual de José Saramago, sintoma infalível de má literatura.
«O Ano da Morte de Ricardo Reis» confere sentido irónico, com sabor a ridículo, ao facto de ter existido, na Europa dos anos trinta do século XX, um punhado de movimentos políticos preocupados em defender uma (subentende-se) indefensável civilização ocidental. Como a atualidade pós-guerra fria foi recolocando o assunto na ordem do dia, a suposta obra-prima de José Saramago fica sem pé. Pelo menos para uma parte dos portugueses e europeus é hoje mais do que legítimo rejeitar que o estado, por via do sistema de ensino, lhes impinja, e à respetiva descendência, uma obra que destrata a sua inteligência e convicções. Só um estado autoritário ou totalitário insiste em impor-se com obras como a de José Saramago à pluralidade da vida social, algo com que não se incomodam as atuais elites intelectuais e culturais.
Não sendo viável apontar outros aspetos de um livro extenso, sublinho que a aproximação ao epílogo (entre as páginas 449 e 494) desfaz as dúvidas. O ponto de referência da entrada no epílogo são as referências a Miguel Unamuno, intelectual nacionalista que teve papel ativo no início da guerra civil da sua Espanha (1936-1939). O português José Saramago esgrime argumentos pró-esquerda fortíssimos contra uma figura histórica de direita, mas de um tempo histórico que não é o seu. Na prática, José Saramago faz-se autor de uma vitória apoteótica de um intelectual vivo sobre um intelectual morto. Nem sei se é possível encontrar uma designação que disfarce a indignidade da ‘técnica’ literária.
Miguel de Unamuno é, na leitura de José Saramago, a personificação do mal, entre os que melhor representa o óbvio lado mau que atenta contra a vida do povo sofredor, fazendo parelha com a igreja, as chefias militares e a demais elite rica nacionalista espanhola, conjunto que começa a ser retratado através dos que se exilaram em Lisboa no Hotel Bragança ou que se exibiam nos «Estoris» durante a guerra civil, nos bairros da gente rica da linha de Cascais. Depois, com a força da sua pena literária, José Saramago invade mesmo a Espanha durante a guerra civil – mas em 1984… – em defesa dos que congregam todas as virtudes: a Frente de Esquerda que estava a ser derrotada. A esta, José Saramago abençoa as atrocidades praticadas pelos seus, atrocidades tidas como selváticas se perpetradas pelos conservadores, com uma descrição pungente do que se passou na praça de touros de Badajoz (p.466, mas que deve começar a ser lida pelo menos a partir da p.462).
Nesse olhar seletivo sobre a violência que nada deve a um sofisticado panfleto soviético, é claro que n’«O Ano da Morte de Ricardo Reis» o repugnante Victor, intelectualmente limitado e com intenso cheiro a cebola, só poderia ser quem é: agente da PVDE [antecessora da PIDE]. Com uma imaginação literária que não dá para mais, José Saramago quis fazer história e, parece que a contragosto, teve de compor um ramalhete de personagens ajustado à utopia em que se destaca Lídia, mulher do ‘povo’ com hábitos de vida desempoeirados e sem estudos, o reverso das elites. É uma empregada de hotel carregada de dignidade e de bons sentimentos, em especial em relação ao seu irmão resistente comunista, Daniel Martins, no epílogo morto na rebelião da marinha no Tejo [8 de setembro de 1936].
Lídia, incansável trabalhadora cuja simplicidade, lucidez e amor desinteressado, que se se submete ao prazer carnal do parceiro, acabam por converter à causa comunista o médico Ricardo Reis, homem rico, conservador e poeta recém-chegado do Brasil nas últimas semanas de 1935 por causa da morte do seu criador, Fernando Pessoa. O último tem direito a circular entre os vivos mais nove meses após o funeral por existir um tempo equivalente para o abandono definitivo da vida ao que existe na sua entrada, os nove meses de gestação. O morto, Fernando Pessoa, vai acompanhando a conversão de Ricardo Reis às virtudes do comunismo que o último, ou ambos, carregam para a eternidade quando finalmente se fecham no túmulo em 1936.
A obsessão de José Saramago com uma certa ideia de ‘povo’ em 1935-1936, tipificando-o em Lídia, tem o senão de ignorar que a I República (1910-1926) tinha caído dez anos antes precisamente por desprezar um povo conservador, rural e católico. Esse mesmo povo que, em 1917, tinha gerado o fenómeno popular das aparições de Fátima, marco na reconstrução identitária dos humildes por si mesmos contra humilhações impostas pelo radical anticlericalismo republicano. A peregrinação a Fátima de 1936 não escapa à sátira de José Saramago. Como bom comunista, é tão incapaz de retratar o que funda a dignidade do povo (com tudo o que de ambíguo isso comporta), quanto extraordinariamente hábil em fabricar um tipo de ‘povo’ que quase só existe na cabeça do escritor.
Considerando que o clímax d’«O Ano da Morte de Ricardo Reis» é a conversão de Fernando Pessoa, por via do heterónimo Ricardo Reis, quarenta e nove anos depois de morto aos encantos do comunismo, estamos perante uma grosseria intelectual bem mais corrosiva para a cultura e identidade portuguesas do que a propaganda do Estado Novo com o filme «A Revolução de Maio». No mínimo, o filme de 1937 e o alter-ego em livro de 1984 deveriam ter o tratamento que merecem em universidades e escolas: exemplos de ridículo intelectual.