Os sujeitos individuais e coletivos apenas fazem sentido em função de uma orientação moral que, no século XX, se tornou diretamente dependente da ação política. É o sentido que esta impõe à moral social que explica, a médio e a longo prazo, se sociedades e povos caminham para a estabilidade social e política e para a prosperidade económica ou se, pelo contrário, não se conseguem libertar da instabilidade e consequente incapacidade de gerarem riqueza.

Desenvolvi a tese num livro recente que parte de dois pressupostos. Primeiro, o sucesso ou o fracasso das sociedades é determinado pelo primado moral e, segundo, o século XX gerou a fragmentação moral das sociedades na sequência da sedimentação do confronto identitário, político, social ou cultural entre a direita e a esquerda, uma vez que cada um desses campos existe em função de uma orientação moral que lhe é própria.

A da direita, de tendência social conservadora, deriva de uma matriz milenar fundada no princípio da autorresponsabilidade. A da esquerda, de tendência social reformista ou revolucionária, é produto de uma matriz hoje secular orientada pelo ideal de vitimização. Tais pressupostos morais são tão inconfundíveis quanto tornados incompatíveis entre si por causa do jogo político das democracias tal como se consolidou após a segunda guerra mundial (1939-1945).

Porque as democracias não funcionam sem um substrato moral, se elas admitem a ambiguidade política (situar-se entre a direita e a esquerda), o mesmo não acontece na dimensão moral. Pela natureza maniqueísta dos seus princípios (Bem/Mal, Justo/Injusto, Certo/Errado), a última não admite ambiguidades (direita e a esquerda, e os demais, apenas existem moralmente se não se confundirem a si mesmos com o campo político concorrente). Fugir a esse dilema significa alimentar o pântano moral das sociedades.

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Admitindo que possam ser discutíveis, relativizar o valor moral dos termos direita e esquerda não só não resolve nenhum dos desafios do tempo atual, como ainda diminui a capacidade de os compreender e encontrar respostas.

Parto de um caso tipo familiar.

Antes e depois de se aproximar do estalinista Partido Comunista Português (PCP) ou do trotskista Bloco de Esquerda (BE), o social-democrata Partido Socialista (PS) nunca deixou de estar integrado no seu campo moral, o da esquerda, e tem até reforçado essa integração. Não é o que acontece com o Partido Social Democrata (PSD), um partido com rótulo e conteúdo equívocos, ou com o democrata-cristão Partido do Centro Democrático Social-Partido Popular (CDS-PP). Não são os primeiros, mas os últimos que se arrastam na desorientação moral.

PSD e CDS-PP insistem em se demarcar moralmente das outras direitas (o ódio visceral primário a Trump e Bolsonaro é sintomático), atitude que não se deteta no campo moral das esquerdas.

Se foi possível ao PS, PSD e CDS integrarem, em 1975, o totalitário PCP no jogo democrático de modo a evitar uma guerra civil, justamente por temerem à época a capacidade destruidora do comunismo, o que viabilizou a democracia portuguesa e domesticou a violência comunista, hoje torna-se difícil compreender as razões do PSD e do CDS-PP para não se esforçarem e fazerem o mesmo em relação aos novos partidos que integram o seu próprio campo político. Ao contrário do PCP de 1975 (e de hoje, tal como do BE), essa atitude é a confissão de os novos partidos da direita não serem ameaçadores para as sociedades, democracias e respetivas instituições. Se o fossem, em Portugal e na Europa, seriam tratados com outro respeito e tolerância, tal como se fez em Portugal, em 1975, com o PCP ou tal como se faz hoje em relação à presença islâmica no Ocidente. Não é respeito, é medo.

Considerando que a moral social de todas as direitas parte do princípio da autorresponsabilidade individual, familiar ou coletiva, tal princípio alimenta necessariamente a ambição da autonomia e do reforço da sociedade na sua relação com o poder tutelar estado e, desse modo, promove de modo efetivo o respeito e a dignificação do indivíduo e da propriedade e iniciativa privadas. A autorresponsabilidade na versão coletiva também confere legitimidade moral a um certo pendor nacionalista ou patriótico identificado com a história e a identidade coletiva multissecular de cada povo e respetivas instituições (da nacionalidade à família) e, nessa sequência, a imigração ilegal ou desregulada nunca pode ser moral e socialmente legitimada. O princípio da autorresponsabilidade gera ainda incompatibilidades morais inultrapassáveis face a engenharias sociais que promovam a discriminação negativa ou positiva, em particular as que se promovem através da aplicabilidade da lei ou se manifestam em atitudes face ao exercício da autoridade ou da imposição da ordem.

Todo esse conjunto de ambições é moral e socialmente defensável através da ação política por se revelar indispensável à saúde mental dos povos e à viabilidade de qualquer sociedade. Uma legitimidade dessa natureza é até reforçada em contextos sociais nos quais a esquerda é hegemónica.

A esquerda, recorde-se, tem como pressuposto o ideal de vitimização que implica, necessariamente, a imposição da fragmentação das sociedades a partir do primado moral. Isso é inevitável quando a ambição é a de reparar, por imposição unilateral da ação política, injustiças que implicam punir os segmentos sociais alegadamente responsáveis pelo tipo de sociedade existente e que se tem de reformar ou revolucionar (brancos, ricos, ocidentais, cristãos, patrões, homens, etc.) e discrimina positivamente as suas alegadas vítimas históricas e sociais (os antónimos). Nessa perspetiva, o valor moral universal da autorresponsabilidade individual, familiar ou coletiva é secundarizado ou mesmo anulado e alguém tem de compensar essa grave falha.

Por outro lado, quando se confrontam perspetivas morais distintas e concorrentes sobre um mesmo objeto, a sociedade, não é possível suprimir a cisão entre uma representação do Bem (na perspetiva dos próprios) e a uma representação do Mal (atribuída aos concorrentes ou adversários). No livro «12 Regras Para a Vida», Jordan Peterson não deixa dúvidas a esse respeito recorrendo mesmo, e de uma forma não apenas metafórica, ao confronto moral entre Deus e o Diabo. Na sua perspetiva, não é possível ignorar essa característica elementar da mente humana.

Daí que uma eventual aproximação entre o PS (centro-esquerda) e o PSD (centro direita) será sempre contranatura porque partem de pressupostos morais incompatíveis, caso contrário não seriam persistentemente concorrentes. Se assim não fosse, há muito que existiria um islamo-cristianismo tendo em conta que essas religiões, e as pessoas dessas religiões, se cruzam entre si e procuram compromissos desde a idade média, porém nunca foi ou será possível ultrapassar a barreira entre elas, uma vez que uns partem do pressuposto moral, com profundas consequências sociais, da guerra santa e outros do amor ao próximo, e comprovadamente a história tornou-os incompatíveis.

Acontece que os socialistas, tal como toda a esquerda, nunca duvidaram da sua pertença a um campo moral próprio e, desse modo, não hesitam em remeter os da moral social concorrente, a direita, para o campo do Mal. Na sua perspetiva têm razão.

Como noutros casos da direita do poder no Ocidente, em Portugal são o CDS-PP e sobretudo o PSD que ambicionam o impossível moral ao ostentarem conflitos, muitas vezes preferenciais, no interior do seu próprio campo político. Mas quando se faz o balanço do último século, a atitude do CDS-PP e do PSD revela-se ainda mais disfuncional.

Há décadas que a história revela que apenas existe um campo político cuja moral social é viável: o da direita. Cometeu crimes, arrependeu-se, não esconde remorsos, regenerou-se. O complexo de culpa que o alimenta transformou o poder de influência social e política da direita numa força impulsionadora de estabilidade e prosperidade. Esse é o lado do Bem, até porque o valor da ação moral resiste à prova do tempo, o que Freud designou por princípio da realidade: saber suportar um certo nível de sacrifício e saber adiar a recompensa.

Razões para o meu livro evidenciar a natureza patológica da esquerda atual (para já não existe outra) por ela representar o oposto, o lado moral do Mal. Sobre um passado que ainda é presente, a esquerda recusa-se assumir os crimes do seu campo político, nunca revelou arrependimentos ou remorsos convincentes por causa desses crimes. Desse modo, uma esquerda que no passado pode até ter parecido moralmente legítima, por isso convenceu um número significativo de indivíduos, com o tempo transformou-se em amoral e, a cada dia que passa, caminha para a imoralidade.

Acontece que o meu livro fundamenta a tese da patologia moral de esquerda em pressupostos teóricos e conceptuais claros, não é ambíguo na definição da moral social, assim como a argumentação é sempre sustentada em evidências empíricas.

Mais não seja porque o livro existe para que o mundo que partilhamos seja menos violento, assim como para que sociedades, comunidades e minorias possam encontrar caminhos que lhes permitam investir por si mesmas na sua prosperidade, em particular as mais periféricas ou carenciadas e, por outro lado, porque o livro está disponível nas grandes livrarias portuguesas e é dedicado ao presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (entre outros) – só me resta concluir que o meu livro está a ser alvo de censura pura e dura por ter sido interditado pela Livraria da Travessa nas suas lojas do Brasil e, não menos grave, pelo à vontade com que a Livraria o faz na terra dos outros, na sua sucursal recentemente aberta em Lisboa.

Salazar ao pé de tais sujeitos era um menino de coro.

Autor de Um século de escombros (clique na capa para aceder a parte do conteúdo).