Já se discute a alternância governativa e, como se diz nos bastidores, “cheira a poder”. No entanto, caso não haja uma inflexão discursiva convincente, para já as opções para o cidadão parecem ser: mudar para que tudo fique na mesma ou votar para além do centro. Quando o discurso da oposição (PSD) é criticar os que no poder desperdiçaram a oportunidade, invocando que chegou o tempo de estar no poder… é só mais do mesmo. É certo que os partidos existem para chegar ao poder e é isso que os move. Mas o poder é só um instrumento para realizar a mudança. O paradigma do poder pelo poder só alimenta o anti poder.

É preciso apresentar um Plano Transformacional para Portugal: um programa de mudanças efectivas ainda que sejam (e, exatamente, porque são) difíceis. Navegar à vista e empurrar os problemas com a barriga, ou seja, ser tático e tentar sobreviver politicamente ao tempo de uma legislatura é fórmula fracassada. O cidadão tem de ser o centro da governação.

O cidadão parece não ser senão uma compatibilidade equívoca (1). Os políticos e os partidos precisam dos cidadãos como sua base social de apoio: os cidadãos como meros eleitores. Já os cidadãos precisam da política, e especificamente da administração, para a resolução dos seus problemas básicos: de emprego, de habitação, de autorizações e licenciamentos, de financiamento, etc. Ou seja, existe um equívoco entre cidadania real e representação. Os eleitores só seriam cidadãos se houvesse círculos uninominais. Assim, os eleitores tornam-se uma abstracção para os políticos ao longo da governação e os cidadãos descobrem mais cedo do que tarde que dormiram com o inimigo. E com isto, a confiança sai sempre atraiçoada.

A política é o exercício da confiança pois esta não é senão, por definição, a hipótese de existência de futuro. A confiança nos políticos é baixa em Portugal. Dados de 2021, do Trust Survey da OCDE, revelam que a confiança dos portugueses no Governo está abaixo da confiança na Administração Pública (ainda que ambas sejam negativas) e dos governos locais (em que a confiança se mantém ligeiramente positiva), sendo que a confiança nos partidos políticos é ainda menor. Segundo análises que têm como base o European Social Survey (ESS) há uma correlação entre confiança política e 1) qualidade da governação, 2) igualdade de oportunidades, 3) equidade de rendimentos e 4) confiança social em geral. Este quadrado mágico deveria ser o programa político de qualquer governo.

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Parece ser, no entanto, a qualidade da governação que de forma mais positiva impacta a confiança política. A qualidade da governação traduz-se em 1) responder aos interesses dos cidadãos 2) possibilidade de participação justa nas decisões políticas e 3) processos de decisão transparentes e sem corrupção. Ou seja, a confiança na política e nos políticos depende também da confiança dos políticos nos cidadãos. As evidências indicam que o impacto de tais relações é mais forte em países afetados pela corrupção e com distribuição de recursos básicos mais desigual. Portanto, desde logo, está aí um programa mínimo óbvio, sustentado pela evidência.

Centremo-nos na qualidade da governação e, especificamente, nos interesses dos cidadãos, o que se relaciona diretamente com a participação e a transparência. Não é certo que os cidadãos alguma vez tenham estado no centro da governação. Basta andar pelo país e ouvir os cidadãos para perceber quantos projetos estão parados e quantos nunca vão ver a luz do dia, sejam eles projetos individuais, familiares, institucionais ou outros. Fiquemo-nos por três exemplos apenas, suficientemente abrangentes do país, um rural e de políticas de território, outro urbano e de políticas de habitação e outro institucional, tipicamente de políticas sectoriais: todos relativos aos interesses dos cidadãos, à participação e transparência, enfim à (falta de) produtividade e à transformação do país.

1) Os incêndios de outubro de 2017. Como acontece demasiadas vezes em Portugal, fomos do oito ao oitenta. Algumas das regras criadas foram muito úteis (tempos próprios e avisos na queima dos remanescentes), outras geraram vários problemas e até vidas em perigo (limpezas obrigatórias e desmatamento do espaço de segurança em torno das habitações). Mas os novos mapas de perigosidade de incêndios criaram tais constrangimentos à construção (até de apoios agrícolas) que põem em causa até o “velho rural” das plantações, quanto mais o “novo rural” (com complemento turístico) extremamente necessário, não só para sustentar aquele, como para o desenvolvimento do interior. Algumas perguntas ficam no ar: quantos projetos de desenvolvimento não se desperdiçaram já por causa desses mapas? E quantos incêndios não tiveram mesmo como causa esses mapas?

2) O recentíssimo Programa Habitação. O governo quer que as habitações devolutas nas zonas urbanas sejam obrigadas à reabilitação. Curiosamente, há vários cidadãos (por exemplo emigrantes retornados) que têm o mesmo interesse do governo, em reabilitar as suas casas que estão nessas condições. Primeiro deparam-se com a dificuldade em saber de forma transparente o que podem fazer. Depois, por vezes, percebem que até para colocar um telhado a Câmara em causa requer um projeto, já para não falar de outros dinheiros… Tudo se torna demasiadamente dispendioso, complexo burocraticamente e, até, moralmente problemático, quando o “untar de mãos” entra em jogo, para portugueses que lutam diariamente para ir vivendo a vida.

3) A participação dos profissionais na melhoria das suas instituições. Durante muito tempo professores, médicos, enfermeiros, funcionários judiciais, etc., lutaram pela dignificação da sua profissão, por melhores salários e pelas suas carreiras. Hoje é a própria Escola Pública, o SNS, a Justiça que vemos nos cartazes das manifestações: a percepção de que as instituições estão em causa é cada vez mais clara. Mas afinal que canais existem para que o cidadão trabalhador, funcionário público ou não, possa propor mudanças? Que participação sente que tem enquanto profissional e cidadão para uma melhoria da instituição (de Educação, Saúde, Justiça, etc.) de que faz parte? Em suma, qual o sentido do seu trabalho de facto?

Uma das visões de futuro que a Administração Pública portuguesa criou nos últimos anos baseia-se em dois novos modelos organizativos: Centros de Competências e Serviços Partilhados. É uma visão que idealiza uma administração mais colaborativa e responsiva com base em duas coisas: planeamento conjunto e interoperabilidade de dados. Porém, o que parece faltar é um Centro de Competências Cidadã que possibilite também uma política partilhada com base na ciência cidadã. É urgente uma política de escuta activa dos cidadãos, das suas queixas e mais ainda das suas soluções para que os seus interesses e os seus projetos possam ser realizados. As auditorias cidadãs (análise de impacto das políticas públicas nos cidadãos) seriam uma forma de participação nas decisões políticas, promoveriam a necessidade de transparência e de serviços menos burocráticos e mais ágeis e, a serem seguidas, aumentariam a confiança social ao promoverem projectos conjuntos e, por essa via, aumentavam a confiança política.

Os interesses dos cidadãos são os interesses do Estado. Porém, as mais das vezes, parece que os governos e as suas administrações consideram os cidadãos grandemente um problema e o Estado e os cidadãos como compatibilidades equívocas! Mudar essa visão, implica fazer do cidadão, não um problema transversal, mas um parceiro fundamental na construção do futuro, colocando-o no centro da governação. É esse o Plano Transformacional de que Portugal precisa.

(1) Compatibilidades equívocas é um conceito utilizado por antropólogos como Pina-Cabral, Susana Matos Viegas, Viveiros de Castro, etc.