Era tão bom podermos dar um passeio verdadeiro por aquilo a que chamamos “a sociedade”, não era? Um passeio literal, no qual pudéssemos pisar e tocar tudo o que compõe todas pessoas a toda a hora. Finalmente conseguiríamos entender realmente o que é “a sociedade”.
Em vez disso, aquilo de que dispomos para “passear na sociedade” são meios como as notícias, as redes sociais ou círculos relativamente pequenos de gente que nos contam como vão as coisas por outras bandas não muito distantes.
E, quando damos esses passeios, uma fatia muito grande do que encontramos tem a ver com conflito: uma sociedade de ativistas que param a segunda circular para enfrentar CEO ‘s (quase todos os CEO’ s ao mesmo tempo). Uma sociedade de patrões que pagam mal e são muito taxados, que enfrentam ao mesmo tempo empregados e deputados, cada um um rival por razões diferentes.
E, por isso, poderíamos depreender que a sociedade é uma “coisa” maioritariamente composta por grupos rivais, ideias opostas e, em geral, gente muito diferente uma da outra.
E, no entanto, olhando um pouquinho mais de perto para membros que pertencem a estes grupos de “gente muito diferente”, normalmente reparo que a maioria das pessoas são parecidas.
Se pensarmos sobre isso, em sociedade, defendemos tanto em conjunto. Todos queremos, como exemplos entre tantos outros, uma casa sobre as nossas cabeças. Todos queremos o melhor para os que nos são próximos. Todos queremos segurança, liberdade e acreditamos que deveríamos ser todos iguais dentro do sistema.
Podem ser valores tão óbvios que nem reparamos neles. Mas são tão importantes que diria que o espaço que sobra serve para descobrirmos formas diferentes de atingirmos estas mesmas coisas. E, por isso, é pouco espaço para sermos tão diferentes uns dos outros como os passeios pela sociedade fazem querer parecer.
É óbvio que divergimos. E, na divergência, há conflito. Mas talvez esse conflito assuma um papel diferente se nos virmos mais como gente que é fundamentalmente parecida do que como gente que é fundamentalmente diferente.
Se esta visão estiver certa, será que podemos gritar com empatia quando queremos gritar coisas?
Pode parecer controverso quando do outro lado da nossa situação está alguém que vemos como uma ameaça à nossa existência. Ativistas climáticos certamente sentem que o seu futuro está em causa e, por isso, é fácil partir para posturas que fazem mais barulho. O mesmo vale para quem se arrisca a perder um teto ou para pessoas trans que vêem a sua maneira de estar no mundo como uma questão de sobrevivência.
Sim, tenho uma simpatia maior com quem grita de uma perspectiva de sobrevivência, do que com quem grita de uma posição menos ameaçada, concorde ou não com as mensagens. Por exemplo, tenho uma simpatia maior com a comunidade piscatória que vai deixar de ter o que comer do que com os investidores da empresa petrolífera que quer construir uma plataforma no pesqueiro e que vê os seus lucros ameaçados.
Mas, seja lá qual for a minha simpatia, questiono a forma como muitas vezes as causas escolhem ser mostradas ao mundo.
É fácil olhar à nossa volta e entender que inimigos comuns ligam pessoas. Talvez seja uma maneira rápida de dar tração a um qualquer movimento. O tal “fazer mais barulho”. Criar um “eles” para reforçar um “nós”.
Mas, quando o cartaz diz “eles querem que tu acredites nisto ou naquilo” é normal que surjam opositores do outro lado. Opositores que, por sua vez, vão dificultar a nossa obtenção de resultados em seja lá o que for de que estamos à procura. Opositores que estavam antes indiferentes e, porque a nossa forma de gritar afetou a sua forma de estar na vida (o trabalhador que não picou o ponto porque os ativistas pararam a segunda circular) deixaram de gostar de nós, fosse lá qual fosse a nossa causa . E opositores que poderiam ser, na verdade, aliados, se não tivéssemos nós dito que eles eram “inimigos” antes de eles não gostarem daquilo que viemos propor por si só.
Por outro lado, podemos tirar muitas vantagens ao assumirmos aliados naqueles que estão indiferentes à nossa posição e até naqueles que estão em posições contrárias. Como partilhamos tanto, se nos colocarmos no lugar do “outro” seguramente vamos encontrar o que nos dói aos dois.
Porque, para encontrar uma solução que funcione rapidamente, temos que encontrar algo que resolva os meus problemas tanto quanto os de quem está do outro lado: Quando ativistas ambientais descobriram que o problema da pesca de tubarões na Indonésia se prendia com questões financeiras fundamentais, o seu grito deixou de ser “vamos acabar com os pescadores de tubarões”. Passou a ser “vamos mostrar que tubarões vivos valem mais que tubarões mortos”. Não é o grito que evoca mais raiva (e talvez por isso não seja a melhor headline). Mas é o grito mais certo.
Por outro lado, um grito com empatia pode fazer quem está do lado de lá perceber que afinal, existe algo em comum para onde ir enquanto mostra a quem está à volta que vimos com consciência. E o primeiro passo talvez seja iniciar o discurso com entender que a razão pela qual o outro lado faz o que faz tem sentido. Sim, para o ativista climático que olha com atenção é difícil negar que uma empresa poluidora possa ter (ou, pelo menos, ter tido) o seu sentido. É a maneira como o mundo resolveu operar e terão existido boas razões para isso. Mas, apesar dessas razões, como é que CEO ‘s e investidores de empresas poluidoras se sentem quando pensam nos seus filhos ou nos seus netos? As razões para o operar dessas empresas até podem ser válidas. Mas será que justificam os custos? E será que justificam os custos mesmo na perspectiva do outro lado?
Sim, sabemos que uma mudança nas palavras não vai mudar o mundo todo ao mesmo tempo. Sim, sabemos que existem situações em que é mesmo preciso bater de frente. Que existem inimigos reais e que a empatia só funciona com quem também tem empatia por nós. Mas, se a sociedade não for, em geral, esse conjunto de botes uns contra os outros e estivermos, afinal, todos no mesmo barco, talvez não precisemos tanto de inimigos. E possamos gritar para mostrar que o objetivo é não afundar, em conjunto.
João Kopke é um contador de histórias que utiliza o surf, a sua formação artística em música clássica e a sua formação académica em Ciências Políticas e Relações Internacionais para criar conteúdos. Juntou-se ao Global Shapers Lisbon Hub em 2020.
O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.