Após termos apresentado em traços gerais, na parte I do presente ensaio, o enquadramento histórico do advento da bioética enquanto disciplina autónoma, bem como a delimitação do seu escopo investigativo, procurámos, de seguida, explicitar o primeiro princípio ético plasmado no “Relatório Belmont” — o respeito pela pessoa humana. Cumpre-nos, agora, (re)identificar e aclarar o segundo princípio ético, empreendendo a sua articulação com a problemática da morte medicamente assistida, em particular com a eutanásia voluntária. Ao invés da intenção que manifestámos inicialmente, não nos debruçaremos sobre o princípio da justiça (terceiro princípio ético do “Relatório Belmont”), não apenas porque tal implicaria um avolumamento exacerbado do texto, mas sobretudo porque a sua “omissão” não influi de maneira alguma nas considerações que aqui se presentificam.
Esclarecemos, na primeira parte do ensaio, que o respeito pela pessoa humana se relaciona umbilicalmente com o conceito de “autonomia”. Nesse sentido, importa compreender que os problemas relativos à bioética médica são biunívocos. Quer isto dizer que o médico, enquanto agente autónomo, também está em contacto com elementos extrínsecos que podem antagonizar-se das suas convicções, o que por vezes impossibilita uma atuação confluente com a vontade expressa pelo seu paciente. De acordo com o princípio da autonomia, um médico pode recusar-se a diligenciar a interrupção voluntária de uma gravidez, mesmo que a sua paciente expresse categoricamente essa vontade. Da mesma forma, um doente que necessite de uma transfusão de sangue para continuar a viver, pode, em consonância com o princípio da autonomia, recusar esse procedimento médico e optar por morrer.
Um dos receios que conduz a que muitos se oponham à despenalização da eutanásia, prende-se com a hipótese da inexistência de critérios suficientemente sólidos, o que dificultaria uma necessária e prudente circunscrição dos casos em que a eutanásia se justifica. A posição conservadora, procurando defender a sua conceptualização acerca da vida, advoga que as sociedades que legalizam a eutanásia denotam um certo grau de desconsideração pelo valor da vida, correndo assim o risco de um retrocesso axiológico que poderá redundar, em última instância, numa regressão civilizacional. Não descurando tais preocupações, acompanhamos, ainda assim, o posicionamento de Peter Singer:
“Se as nossas leis fossem alteradas de modo a qualquer pessoa poder praticar a eutanásia, a ausência de uma linha divisória clara entre aqueles que podiam justificadamente ser mortos e os que não podiam levantaria um perigo real; mas não é isso que os defensores da eutanásia propõem. Se os atos de eutanásia só puderem ser praticados por pessoal médico, não é provável que a propensão para matar alastre descontroladamente por toda a comunidade. Os médicos já têm um poder considerável sobre a vida e a morte, por intermédio da possibilidade de suspenderem o tratamento”.
No que respeita ao segundo princípio ético — o princípio da beneficência —, este radica na exponenciação dos benefícios e na consequente redução dos malefícios. Seguindo esta linha de raciocínio, poderíamos ser levados a afirmar que o princípio da não-maleficência é subsumível ao princípio da beneficência, contudo, tal assunção seria pouco pudente. Parece-nos, com efeito, fundamental discernir e separar com clareza os dois princípios, tal como Tom Beauchamp e James Childress preconizam em Principles of Biomedical Ethics. Na sua ótica, a não-maleficência detém uma conotação negativa, na medida em que a simples ideia de “não fazer mal” é suscetível de conduzir à inoperância. Por seu turno, o princípio da beneficência não se limita a postular a negação de todo e qualquer ato nocivo, porquanto possui uma delineação positiva que impulsiona a promoção do bem.
Ao analisar os dois pressupostos éticos que identificámos — o princípio do respeito pela pessoa e o princípio da beneficência —, constatamos que estes podem conflituar entre si (como se depreende, aliás, nos exemplos expostos em epígrafe), levantando problematizações cuja resolução se nos afigura complexa. Pensemos, desta feita, num doente cujo restabelecimento da saúde depende de um determinado fármaco, e que o seu médico, tendo em conta não só o seu conhecimento teórico como também a sua experiência profissional, aconselha vivamente a sua administração. O médico, regendo-se pelo princípio da beneficência pretende promover a melhoria do estado clínico do seu paciente, no entanto, este último tem legitimidade para se manifestar contra a posição do médico, usufruindo do princípio da autonomia. Como adverte Singer, “os seres humanos não são seres puramente racionais; assim, embora a aceitação da ordem da razão nos dê um motivo para agir da forma prescrita pela máxima da benevolência, podemos ter outros motivos, alguns dos quais a favor e outros contra a ação”.
Qualquer reflexão no âmbito da bioética médica tem como pano de fundo a noção de “pessoa” e, por maioria de razão, a dignidade humana. Não deixa de ser curioso que, etimologicamente, o termo “pessoa” — do grego persona — remeta para a artificialidade de uma máscara teatral. Contudo, no decurso do tempo, a palavra “pessoa” adquiriu novas formulações semânticas; de acordo com a tradição judaico-cristã, por exemplo, verificamos que o vocábulo alcançou um significado ético-moral, passando a identificar-se com a interioridade do ser humano compreendido como ser dotado de livre-arbítrio. Por sua vez, os avanços no domínio da ciência alavancaram o surgimento da aceção biológica do termo “pessoa”, passando este a caracterizar a especificidade genético-evolutiva da espécie humana.
Devido ao seu estatuto polissémico, é possível conjeturar a existência de uma cisão irremediável entre as conotações religiosa e científica da palavra. Todavia, há motivos válidos para se equacionar os benefícios de uma hipotética conciliação: pelo facto de o progresso da tecnociência aplicado à medicina demonstrar um crescimento galopante, torna-se premente a coordenação entre os diferentes prismas de “observação” e estudo da pessoa humana. Não obstante, cientes da evolução permanente do conhecimento científico, não será insensato projetar um futuro em que a medicina se encontre de tal modo avançada, que os requisitos necessários para a aplicação da morte medicamente assistida deixem de existir:
“Talvez um dia seja possível tratar todos os doentes terminais e pacientes incuráveis de uma forma tal que ninguém requeira a eutanásia e a questão deixe de se pôr; mas de momento não passa de um ideal utópico e não constitui, de forma alguma, um motivo para recusar a eutanásia a todos aqueles que têm de viver e de morrer em condições muito menos confortáveis (…) Seria mais consentâneo com o respeito pela liberdade e pela autonomia individuais legalizar a eutanásia e deixar os pacientes decidir se a sua situação é insuportável ou não”.
Os conservadores sustentam uma visão antitética, proclamando que a vida, enquanto dádiva atribuída pelo inesgotável amor de Deus, constitui o único direito não revogável pelo ser humano. Numa perspetiva teológica, compreendida como um dom divino, a vida contempla uma componente salvífica de caráter metafísico que pressupõe a confluência com a vontade suprema de Deus. Este argumento é o sustentáculo da ideia de que a pessoa tem o dever de valorizar e preservar incondicionalmente a sua existência.
Em suma, pudemos antever que existem diversas conflitualidades entre os princípios éticos que analisámos, o que, aliás, motivou alguns investigadores a sugerirem a primazia de um sobre os restantes. Esta dissonância demonstra-nos, por um lado, que nenhum dos princípios deve ser investigado de forma isolada, e, por outro, que qualquer tentativa de universalização dos mesmos se mostra infrutífera. Cumpre, pois, à bioética médica refletir sobre a possível compaginação dos diferentes princípios, visando uma convergência com as noções configuradoras do estatuto ontológico do ser humano: é necessário atender à dimensão biológica do homem, sem nunca transcurar a salvaguarda da dimensão ético-moral da pessoa. É neste contexto amplo e complexo que a bioética apela à interdisciplinaridade, acreditando que um diálogo eclético entre a ciência (lato sensu), a filosofia, a religião e o direito, contribui para a prevalência de tomadas de decisão mais escrupulosas, tendo sempre como objetivo terminante a proteção da dignidade da vida humana.