1 O talento não tem morada, pousa sem anúncio e cintila onde quer. O que o pode tornar diferente, ou muito diferente, é o seu eco e nisto mesmo, nesta espécie de ingrata contabilidade, reflectia eu, assistindo, no salão nobre de um hospital, a um desfile de roupa produzido pelas suas doentes. Desafiante gesto, portanto. À mesmíssima hora e dia em que ocorria a Moda Lisboa onde os criadores nacionais expunham o melhor da sua inspiração e do seu traço, numa fértil mistura de “melhores”, ali no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL) — ex-Júlio de Matos — também se tratava de melhor, mas de um outro, mais delicado. Um melhor “diferente” e nesse sentido esta coincidência temporal entre “modas” ,não me deixou incólume: de um lado a predisposição para o brilho e o aplauso; do outro, um espectáculo caseiro, numa revelação quase escondida, confinada àquelas quatro paredes e no entanto, também capaz e oh quanto, de cintilação. Tão surpreendente que percebi que era quase obrigatório contá-lo. Tarefa à partida espinhosa – a dificuldade de contar, surgia-me como directamente proporcional à incredulidade que suscitaria – mas paciência: não tinha eu “visto”? E o desafio não era afinal o meu próprio confronto com descoberta de que “ali” também podia escorrer — e escorreu — criatividade e o talento para a concretizar?

2 Celebrava-se o Dia da Saúde Mental – seja lá o que isso signifique para esta espécie de estorvo na Saúde Pública — de modo que o CHPL que mora naquele vastíssimo recinto arborizado de 23 hectares em plena Lisboa, se sentiu naturalmente convocado. Como ali colaboro, já aqui um dia dei notícia da pulsação de vida que ocorre, em circunstâncias complexíssimas, nos múltiplos pavilhões deste hospital psiquiátrico; da qualidade clínica e humana dos seus técnicos e profissionais, da generosidade que a tudo atende num constante, ininterrupto, fazer de omeletes com poucos ovos. Também contei que lá existe uma Rádio (“Aurora”, de seu nome, que emite “a sério”), exposições de artes plásticas onde artistas de renome colaboram com doentes do hospital, ateliers de costura, cozinha, e tanto mais. A celebração do dia da Saúde Mental vivia-se – e viajava — por alguns lugares daquela imensa área, através de diversos gestos, “mostras” e ocorrências mas o que desta vez me acendeu a curiosidade foi o observar ao vivo o trabalho da “Ar’Cos (artesanato e costura) , assim se chama estavalência” da Unidade de Terapia Ocupacional. Como me explicaram ela é ao mesmo tempo “um fórum com atividades sócio ocupacionais no domínio da costura, destinado a utentes do CHPL, para promover e disponibilizar-lhes condições para o desempenho de atividades ocupacionais e socialmente úteis, através do desenvolvimento das suas capacidades criativas e criadores”.

Palavras demasiado áridas, porventura e que talvez ponham a milhas de distância desta crónica os leitores mais apressados ou distraídos embora mesmo assim, eu faça questão de dizer o que habita por de trás da secura cortante deste vocabulário: habita uma vontade de afirmação que abata a “diferença”; um talento e uma criatividade que por serem olhados ao viés, não diferem afinal assim tanto dos talentos “oficiais”; habita a desarmante naturalidade que envolveu este acontecimento, posta e transposta na firme decisão em fazer “como os outros”, quando não se é exactamente como eles. Como se não houvesse distância, muros, o selo do estigma. Como se não houvesse “diferença”.

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3 Júlia Melão, alta e elegante como os vestidos que idealiza, é “monitora de design criativo” no CHPL e pintora e decoradora de interiores em (escassos) tempos livres. Percebe-se que é uma “inspirada”, tudo nela o sinaliza. Concebeu todos os modelos exibidos nas edições destes desfiles anuais, esta foi a sexta. “Ponho o pano à minha frente e corto… e depois vejo nascer uma peça de roupa”, diz ela como se fosse só assim: “O que talvez seja inovador é que tudo é criado aqui, feito aqui e vendido aqui”. Às vezes Júlia faz (boa) equipa com a costureira Regina Gomes, que “apoia o atelier sempre que pode” e sabe olhar para um modelo e perceber o que lhe falta para estar perfeito. Os tecidos são oferecidos, reciclados ou comprados, graças à venda da roupa e à existência de um pequeno fundo de maneio que também distingue todas as utentes que ali trabalham – umas internas, outras em regime de ambulatório — com um “incentivo monetário”.

No dia que em que visitei este pavilhão havia várias cabeças de diversas idades debruçadas sobre bordados, novelos de lã, pedaços de tecido, agulhas, tesouras. Trabalhava-se como em qualquer outro atelier de costura, sob o olhar feliz de Odette Gomes, (atentíssima) coordenadora desta Unidade.

“Sabe o que é sempre o mais importante? Não é o desfile, não são os aplausos do público, não foi nós termos gostado. Foi o elas terem gostado, terem-se sentido bem, realizadas. E como tal, terem passado um momento tão alegre.”

“Elas” foram as que cozeram os modelos criados por Júlia Melão, confecionando também chapéus, tricotando écharppes, montando adereços. E depois, viram-se as mesmas “elas”, bem penteadas e bem maquilhadas, desfilar numa passerelle branca, ladeadas por dois utentes que no traje e na atitude não destoavam dos que vimos fazer o mesmo, fora daquela ilha da Avenida do Brasil.

4 Grande parte do combustível que me alimenta a profissão e acelera o motor que a faz andar é um empenho vital de contar: o saber que há “o” que contar e depois saber que o posso fazer. As vezes é apenas uma vontade jubilosa, um vivo impulso de partilhar o que se viu ou descobriu. Mas também pode ocorrer que o contar seja uma responsabilidade ou parecido com isso e não, não é blá blá, é o dever de anunciar. Não é por acaso que sigo à letra uma frase de Virginia Woolf, lida há anos e anos — há séculos? — quase fazendo dela lema, inspiração, guia, tudo junto. Dizia Virginia — escrevo isto vezes sem conta – que “nada acontece até ser contado”. Ela sabia . Não acontece. E por isso hoje — deixando intencionalmente entre parêntesis o fazer e desfazer de acordos e governos, as Sírias, os Brexits ou a perigosamente dividida Barcelona – ecoei o que vi no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa.

Não sei se consegui. Mas contei. E dia destas também ainda hei-de contar tudo isto à Eduarda Abbondanza.