Fui escutando, amiúde, que não era preciso ser muito inteligente para se ter um Mercedes. Porque todos os empreiteiros compravam um… Tudo porque se subentendia que quem não conseguia ter bons resultados escolares se poderia, com facilidade, transformar num empreiteiro de sucesso. É claro que teremos sempre a obrigação de perguntar se ao sucesso (mesmo na construção civil) se chega sem inteligência. Ou se é razoável supor que o mesmo hardware neuronal que sustenta as diversas expressões da mesma inteligência fizesse com que, “naturalmente”, houvesse quem fosse capaz de ser inteligente numa matéria e um bocadinho limitado noutra. E isso não dependesse, unicamente, do software que as aprendizagens transformaram numa rede sintática oleada e veloz (que se enviesa, de vez em quando) e não resultasse da forma como elas foram estimuladas de forma coerente, consistente e constante. E, já agora, se é assim tão básico ter sucesso como empreiteiro, porque é que, para algumas dessas pessoas (muito mais escolarizadas que muitos empreiteiros) é tão difícil, mesmo que o desejam, terem um Mercedes?…

Sem nunca o dizermos de forma aberta, existe uma tendenciazinha para achar que há quem nasça predestinado para a inteligência. Como se as crianças que parecem indolentes ou preguiçosas, ou aquelas que coleccionam dificuldades sobre dificuldades escolares, fossem amigas da “burrice”. A verdade é que, se os seus resultados escolares não forem relevantes desde muito cedo, a escola define-as como crianças com problemas. E desiste delas. Como se as dificuldades de aprendizagem duma criança não devessem constituir problemas para a própria escola resolver. Resgatando-as para a inteligência que não deixam de ter. Mas, regra geral, os problemas são delas. As dificuldades são delas. Podem vir, até, a tornar-se empreiteiras, mais tarde, mas, se não têm sucesso escolar, não são inteligentes… Sem nunca se reparar que há muitos meninos que, mesmo antes de terem entrado na escola, já acumularam insucessos sobre insucessos. E vivem em condições, em famílias e com expectativas sobre si inacreditavelmente depauperadas. Que, por mais que sejam tão competentes, como as outras crianças, acumularam níveis de sofrimento que comprometeram a sua inteligência, com toneladas de toxicidade, a ponto dela parecer tímida, retraída ou, mesmo, inexistente.

A maneira como acreditamos que há pessoas inteligentes e pessoas burras é, desde logo, uma forma de nos capacitarmos para descobrir que, com essa clivagem tão simplista, estará a faltar um bocadinho para sermos um pouco mais inteligentes.

Mas é verdade que, intuitivamente, percebemos logo quando estamos a falar com alguém muito inteligente. Porque a forma como abstrai, visualiza em perspectiva e é versátil nos argumentos nos sugere que está a fazer cálculo matemático com as ideias. Ou a usar as palavras, como quem tece filamentos e filigranas e os liga e os torna clarividentes, claros e harmoniosos entre si. As pessoas muito inteligentes chegam do complexo ao simples ou ao belo mais depressa. E, por isso mesmo, porque parecem muito diferentes da maioria das pessoas, levam-nos a supor que nasceram assim. O que não é verdade. Somos todos, inacreditavelmente, inteligentes. E sensíveis. Intuitivos. E audazes. Mas tal como um músculo que se trabalha (ou atrofia) assim é a inteligência: estimula-se; educa-se; apura-se; e refina-se. De forma sempre mais esmiuçada, mais complexa e mais filamentosa. Ou se amedronta e assusta. E se intimida ou se coarta.

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A família é indispensável para a forma como a inteligência se educa. A maneira como dá mundo, fornece palavras, estimula pelo exemplo, acolhe a dúvida, acarinha a pergunta, escuta, interpela, desafia, autonomiza, cria e opina, faz com que uma família seja a reserva natural da inteligência humana. Não é, por isso, tão raro assim que os pais se deslumbrem com a precocidade, a complexidade, a tenacidade e a acutilância duma criança pequenina, quando se trata de aprender. E, muito menos, que se perguntem: “onde é que ele foi buscar isto?…”, quando se trata dela resolver problemas, intuir o sentido das coisas, das pessoas e das palavras duma maneira fulgurante. Ou de dar ares de pensar mais longe e mais profundamente do que, ainda não há muito tempo, nós imaginávamos que ela seria capaz de o fazer. O que estraga a inteligência das crianças é a forma como, por vezes, os pais não a conseguem acompanhar com a mesma agilidade. E, sobretudo, o modo como eles interagem com o mundo e com aquilo que sentem, que elas observam, que faz com que tudo isso traga às crianças medo e insegurança quando se trata de verem co-validados, junto dos pais, todos os rasgos de inteligência que não deixam de ter. Os pais, sem darem por isso, censuram, reprimem e enviesam a inteligência dos filhos. Com preconceitos e pré-juizos. E estimulam, ao contrário daquilo que supõem, uma clivagem entre uma inteligência geral (mais ligada ao conhecimento) e uma inteligência emocional (relacionada com a sensibilidade, a intuição, a empatia, os afectos e as interacções sociais). Mesmo quando alimentam a ideia de serem muito menos restritivos que os seus pais terão sido. Educar pelo medo desencontra as crianças da sua inteligência. Mas educá-las à margem das regras, da frustração e dos limites, também.

Ora, sejamos claros, não há inteligência geral sem inteligente emocional. Nem, em boa verdade, inteligência sem bondade. E vice-versa. O que nos empurra para esta fantástica democracia que nos leva a descobrir que, apesar da inteligência que desenvolvemos, nos falta, a todos, sempre um bocadinho para sermos mais inteligentes.

A escola é, também ela, preciosa para acolher e expandir a inteligência. Quanto mais criativa, mais capaz de desafiar para a palavra e para a opinião, quanto mais acolhe o corpo e pactua com a curiosidade, e quanto mais ela descobre as necessidades educativas especiais de cada criança, mais contribui para que a inteligência cresça. Por mais que a escola acarinhe as crianças que aprendem mais depressa. E aquelas que aprendem duma forma demasiado “pré-definida”. E que parecem saber as coisas de trás para a frente e na ponta da língua. O que faz com que a escola, em relação às outras crianças, acentue as limitações que elas, entretanto, coleccionaram. Agravando-as, de seguida; muito mais. Tornando-as, ao contrário da vontade de todos, menos inteligentes. Tragicamente, há muitas crianças que, depois da escola, se tornaram muito menos inteligentes do que quando lá entraram.

Tudo isso, porque a inteligência é a arte de ligarmos tudo o que sabemos com aquilo que nos propomos aprender. Aquilo que conceptualizamos com tudo o que sentimos. Quanto mais ligamos pontas com pontas e com mais pontas mais inteligentes nos tornamos. Talvez por isso possamos afirmar que os algoritmos são o equivalente matemático da inteligência. E, tal como eles, que ela seja tão inacreditavelmente capaz que nos surpreender com o que somos capazes.

Mas a inteligência é tão sensível e tão moldável que há dias em que somos mais inteligentes do que noutros. Há relações que nos tornam mais inteligentes. E trabalhos que contribuem para sermos inteligentes. Como há famílias, contextos e escolas que nos tornamos menos inteligentes. E épocas da história, também. Quanto mais as nossas relações esperam de nós, sobretudo, passividade e “obediência”, e muito pouco interpelação, contraditório, dúvidas, perguntas e problemas, menos elas nos convidam para a inteligência. As nossas relações têm a inacreditável capacidade de nos tornar ou mais inteligentes ou mais burros. Sendo certo que quanto mais aceitamos que nos tornem mais burros mais competentes nos tornamos para o sermos.

Seja como for, sermos inteligentes é uma ideia escorregadia. A inteligência é, para sempre, uma tarefa em aberto. Na verdade, nunca somos inteligentes. Como se essa fosse uma qualidade mais ou menos estática e impermeável, padronizada pelo código genético. Quando nos convencemos que somos inteligentes, mais rapidamente a vida nos recorda que teremos perdido ocasiões preciosas para o demonstrarmos. Ajudando-nos a perceber que a vaidade e a inteligência casam mal, uma com a outra. Mas que inteligência, simplicidade, transparência e humildade são cúmplices que se ligam muito bem. É por isso que se aproveitarmos as interpelações que a vida nos traz descobrimos que, sempre que a soubermos escutar, ela nos ajuda a sermos mais inteligentes. Sempre que não somos capazes de aprender com ela, assim tudo se estreita na inteligência e nos tornamos mais estúpidos.

É verdade que, colocadas as coisas desta forma, tudo pode parecer, perigosamente, muito reducionista. Mas sempre que, voluntariamente, renunciamos à inteligência tornamo-nos estúpidos. Grande parte das vezes, sem darmos por isso. O que, valha a verdade, acontece muito mais vezes do que devia suceder. Unicamente porque evitamos pensar.

Aprender sem erros não nos torna, por inerência, mais inteligentes. Mas mais medrosos de não estarmos ao nível dos erros que podemos dar. Já quanto mais uma escola acentua o erro mais se recusa a aprender com ele. Eu não acho que as pessoas inteligentes cometam menos erros; claro. Acho – isso, sim – que escutam a vida melhor. Sem tantos preconceitos. Com mais desprendimento. De forma mais livre, portanto. É por isso, talvez, que aquilo que as distinga seja, sobretudo, a capacidade de aprenderem com os erros. E será nisso que elas mais se destacam.  Por mais que, ao errarem muito, nunca fiquem escravas dum só erro. E, por errarem muito, terem aprendido a antecipar os erros. Por mais que não deixem de os ter.

È por tudo isto que eu acho que isto dos nossos filhos errarem muito pouco, terem sempre muito boas notas e, apesar do stress todo em que vivem, serem sensatos, equilibrados e amigos do conhecimento nem sempre é um admirável mundo novo. Os nossos filhos são muitíssimo melhores do que eles imaginam. Mas não são tão bons como supõem. Mas erram de menos. E isso não os ajuda a ser tão inteligentes como podem ser. Sendo certo que, se nos demitirmos de os trazer pela mão até à inteligência e se não criarmos restrições àquilo que lhes inibe a inteligência — como a ausência de corpo e de exercício físico na sua aprendizagem, a forma frustre como estimulam a palavra dada e a palavra escrita, a maneira como deixamos que corroam a inteligência com o audio-visual e com o digital, o jeito relaxado como deixamos que não sejam autónomos e interactivos e a forma distraída como vamos trabalhando para que tenham menos saúde mental — eles podem aprender depressa, por mais que se cresça devagar; e podem dar a ideia de que sabem as coisas de trás para a frente e na ponta da língua, por mais que precisem de errar mais para melhor aprenderem. Mas, sem darmos por isso, eles vão-se tornando menos inteligentes. E isso — desculpem! — é um inacreditável absurdo. Que eles não merecem.