Em tempos em que a comunidade internacional busca responder aos desafios climáticos, a política da contenção nuclear, tão característica da Guerra Fria, pode, talvez insuspeitamente, servir de inspiração para as ambientais. Embora aquele conflito tivesse polarizado o planeta, representantes de ambos os lados lograram negociar compromissos substantivos que minimizaram o risco da sua destruição.
Irrealistas como muitos dos atuais ativistas ambientais, os pacifistas na década de 1960 acreditavam que o mundo poderia alcançar a paz perpétua, por meio de um desarmamento voluntarioso e unilateral. Porém, tanto agora como então, na anarquia do sistema internacional, a construção de soluções viáveis para questões globais passa pela existência de certa disposição cooperativa por parte das potências.
Foi o que se passou em 1962, quando a crise dos mísseis cubanos aproximou o mundo do apocalipse nuclear. Como depois descreveu Khrushchev, naquele momento de máxima tensão da ordem bipolar, as duas superpotências se enfrentaram “cada uma com o dedo no botão”. A partir daquele incidente, a crescente disposição de americanos e soviéticos para cooperar resultou no Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), de 1968.
Embora caracterizado pela assimetria dos seus compromissos, o TNP provou-se o mais bem-sucedido instrumento multilateral produzido pelas superpotências durante a Guerra Fria. Trata-se de um importante ativo: a ordem internacional produziu um regime que logrou impedir a disseminação horizontal das armas nucleares. É um feito significativo em se tratando do mecanismo de dissuasão preferido pelos estrategistas.
Em um mundo que caminha para a multipolaridade, parece imperativo engajar as potências regionais nas soluções cooperadas para os problemas globais. E os desafios ambientais encimam o rol de prioridades da comunidade internacional. Porém, a proposta dos EUA e seus parceiros ocidentais para combater a crise climática afigura-se inexequível e fadada ao fracasso.
Soluções particulares para problema difuso
Os acordos que costumam emergir das cimeiras da ONU sobre o clima sabem a ontem; tendem a refletir o passado próximo, quando os EUA se pretendiam capazes de moldar o mundo segundo seus valores e interesses. Já tem sido assim há tempos, pelo menos desde quando as mudanças climáticas ainda não inspiravam alarmes ou temores de caos. Nesse sentido, pode-se dizer que Washington tem promovido uma agenda afirmativa dos interesses próprios e daqueles de seus aliados ricos ao tratar do problema ambiental.
O autocentrismo da abordagem dos EUA está em linha com a tradição realista de sua política externa. Contudo, furta aos países emergentes as oportunidades de rápido crescimento econômico de que gozou o Ocidente. A desigualdade entre os países é a regra, não a exceção. Os emergentes veem a riqueza ocidental como condição sine qua non para a defesa de uma agenda ambiental radical; aos seus olhos, uma preocupação de luxo.
A era da pós-verdade, em que os fatos se confundem com as narrativas, repercute sobre a política ambiental internacional. No seu grande palco, os atores estatais valem-se dos dados que melhor justificam suas posições. Para os EUA e a Europa, os maiores emissores históricos de gases, o foco das políticas deve recair sobre os maiores emissores atuais.
Aos olhos do Ocidente, a China, a maior emissora em termos absolutos, estaria moralmente obrigada a assumir compromissos proporcionais à escala da poluição que produz. Dessa forma, os EUA e a Europa, segundo e terceiro maiores emissores respectivamente, pressionam a China a comprometer-se com metas invulgarmente ambiciosas.
Mas Beijing reluta. Para o governo chinês, a estratégia de rotular os países em desenvolvimento inimigos do meio ambiente seria mera cortina de fumaça para esconder os verdadeiros responsáveis pela destruição do planeta. O argumento da China é reforçado por dados divulgados em março pelo Banco Mundial, baseados em toneladas métricas per capita. As emissões da China em 2018 foram de 7,4 toneladas métricas por cidadão, muito menos do que aquelas de alguns dos principais países ricos, como os EUA (15,2), Canadá (15,5), Austrália (15,5) e Coreia do Sul (12,2).
Em situação idêntica à da China encontra-se o Brasil, sexto maior emissor de CO2 em valores absolutos e contumazmente acusado de negligencia ambiental e até, por vezes, de estimulador do desflorestamento. Contudo, com 2,0 toneladas métricas por brasileiro, o país ocupa posição muito confortável no ranking das emissões per capita. Relativamente à preservação das matas nativas, o governo do Brasil apela aos dados do Relatório Planeta Protegido, da ONU, para garantir que “somos o país que mais preserva o meio ambiente”.
O tratamento dispensado às questões ambientais parece ser, em linhas gerais, função do grau de desenvolvimento dos países. E o processo global de redistribuição do poder entre os países, torna a imposição dos custos das políticas ambientais matéria ainda mais intrincada. Embora a questão ambiental seja indivisível e as emissões de gases de efeito estufa afetem a integralidade da população mundial, as negociações ambientais não estão abertas a todos.
À diferença do que anseiam Joe Biden e António Guterres, por exemplo, os acordos multilaterais, de alcance universal, não costumam produzir compromissos capazes de remediar a questão climática no curto prazo. Tampouco os discursos alarmistas ou a estridência de ativistas resultam para alterar a conduta de líderes nacionalistas recalcitrantes. Autocratas como Vladimir Putin e Xi Jinping dominam a arte da ambiguidade e da conveniência de movimentos.
Mais ainda, os adversários da ordem internacional liderada pelos EUA tomam decisões orientados pelo instinto de autopreservação. Sua assertividade no estrangeiro também serve para reforçar seu autoritarismo doméstico, estruturado para perpetuar a elite governamental no poder. Por isso, governos recalcitrantes não aceitam limitação à defesa soberana de seus interesses.
Os líderes revisionistas rechaçam o projeto de um mundo governado por regras e instituições liberais – como o Estado de Direito, democracia e respeito aos direitos humanos. O legado idealista wilsoniano, que Roosevelt temperou com doses de seu peculiar pragmatismo para estruturar a ordem mundial pós-1945, foi cancelado neste início do século XXI.
Ao longo das últimas décadas, o unilateralismo dos EUA passou a ser visto como excessivo, a ponto de despertar a vontade de poder não apenas entre seus adversários, mas também no seio de antigos aliados. Rússia e China não têm qualquer compromisso com a preservação ou fortalecimento da ordem liberal. Ao resistirem que os EUA e seus aliados assumam o papel de condutores globais da política climática, reforçam seu pleito pela construção de soluções que se encaixem no modelo alternativo de governança internacional por eles propugnado.
Dividir o peso da responsabilidade
A multipolaridade é uma realidade cada vez mais presente nas relações internacionais. Os EUA terão de aceitar dividir com outras potências o papel de principal provedor de bens públicos mundiais. A depender dos termos dessa divisão, Washington talvez consiga prolongar a primazia mundial que exerce desde o fim da era bipolar.
Em 2002, Joseph S. Nye Jr. elaborou brilhantemente sobre o paradoxo do poder americano. Se, por um lado, as capacidades dos EUA geralmente bastam para desestimular recalcitrantes a desafiá-los, por outro, são insuficientes para alcançar todos os objetivos americanos. Por isso, alguns desses por vezes compelem os EUA a adotarem uma abordagem mais inclusiva e multilateral, visando a construir soluções compartilhadas, especialmente no caso de problemas mundiais.
É precisamente o caso da questão ambiental. Ela requer que os EUA dividam seu protagonismo com outros key players. A condição de maiores emissores de gases causadores do efeito estufa cacifa Rússia, China, Irã, Índia e Brasil nas negociações de acordos sustentáveis. Embora muitas vezes seus líderes sejam avessos aos valores e regras liberais, esse se trata de um mal menor. As soluções para os problemas ambientais passam, obrigatoriamente, pela cooperação desses países.
O tratamento discriminatório dispensado a tais países por líderes mundiais e ativistas prejudica mais do que contribui para o ambiente de negociação. A ausência de Vladimir Putin, Xi Jinping e Jair Bolsonaro na COP26 não indica, necessariamente, desinteresse de seus governos pela questão climática. Pode ser interpretada como indicador de insatisfação com o teor do debate conduzido pelas potências economicamente desenvolvidas.
A presença de expressivas delegações em Glasgow, dispostas a negociar e assumir compromissos, evidencia posições muito diferentes das acusações de omissão feitas por Biden contra Putin e Xi. Do mesmo modo, declarações como a do jornalista e ativista britânico, George Monbiot, que qualificou Bolsonaro de “ameaça global à vida na terra”, servem apenas, quando muito, para alimentar a belicosidade dos seguidores do presidente populista.
Esse gênero de histeria é prejudicial à cooperação internacional. Aqui, vale retomar um exemplo da questão nuclear na década de 1960, quando acordos de não proliferação foram desenvolvidos e implementados de modo gradativo. O TNP é uma evolução do Tratado de Proibição Limitada de Testes Nucleares alcançado em 1963, por Estados Unidos, o Reino Unido e a União Soviética, depois de oito anos de difíceis negociações.
Assinado em 1968 pelas potências nuclearmente armadas, o TNP entrou em vigor em 1970, ratificado por 40 Estados signatários (França e China somente o fariam em 1992), com validade de 25 anos e submetido à revisão a cada cinco anos. A natureza incremental do TNP parece estar na base do seu sucesso como instrumento do regime internacional de não proliferação nuclear. Ademais, ela sugere que a dinâmica do sistema internacional é incompatível com compromissos de horizonte temporal tão largo, chegando a quatro décadas; mormente em se tratando dos países em desenvolvimento em relação à questão climática.
Se, por um lado, o mundo ainda está distante do desarmamento geral e completo especificado no TNP, por outro, a sombria previsão de John Kennedy, em 1960, segundo a qual a proliferação alcançaria até 20 nações ao término de sua presidência, não se concretizou; nem mesmo seis décadas depois. Atualmente, exceto aqueles que optaram por se tornarem Estados nuclearmente armados à margem do TNP (declaradamente, Paquistão, Índia e Coreia do Norte), o regime internacional de não proliferação conta com a adesão de todos os membros da ONU.
Se a COP26 foi um fracasso, conforme decretou Greta Thunberg – mal as negociações tinham começado –, não foi por ter frustrado as expectativas superdimensionadas de ativistas, que não têm sobre os seus ombros o peso das responsabilidades de Estado. O fracasso, se é que se pode classificar assim as tentativas de construir acordos sobre o clima, decorre, precisamente, porque o problema por vezes é tratado por líderes mundiais desde o capricho de ativistas mimados. A soberania ainda é um ativo nas relações internacionais, e o Estado seu principal ator.