1. O Pacto para a Justiça (denominado “Acordos para o Sistema de Justiça”), subscrito pelas Ordens e Associações Profissionais em Janeiro deste ano, propõe no início o “estudo da unificação da jurisdição comum com a jurisdição administrativa e fiscal, criando uma ordem única de tribunais, um único Supremo Tribunal e um Conselho Superior da Magistratura Judicial.”
Em contraciclo com o que ficou consagrado nesses Acordos, a secretária de Estado-adjunta e da Justiça Helena Mesquita Ribeiro, que coincidentemente também é juíza dos tribunais administrativos e fiscais, veio anunciar no Expresso de 21 de Julho um conjunto de medidas que, segundo se depreende, vai tirar a jurisdição administrativa e fiscal do pântano em que se encontra há muitos anos.
São esses os dois polos de uma questão (mais ampla) que motiva este texto.
2. Não é de agora a ideia de agregar, numa única jurisdição, os tribunais comuns de primeira instância e os tribunais administrativos e fiscais.
Mas essa discussão é muitas vezes feita com meias palavras e parcimónias institucionais ou, então, revestindo o tema numa análise hermética e académica, sem se cuidar que a sociedade evolui e tem a expectativa de que os governos criem sistemas de organização judiciária suficientemente flexíveis, credíveis e eficientes, e capazes de responderem às reais necessidades das pessoas e das empresas.
3. O Governo de Passos Coelho, tendo Paula Teixeira da Cruz como ministra da Justiça, introduziu mudanças muito importantes na estrutura judiciária, reorganizando os tribunais comuns de primeira instância a partir dos seguintes pressupostos:
- Adoptou um novo modelo de tribunal de comarca de base territorial significativamente alargada, potenciando novos mecanismos de gestão.
- Apostou forte na especialização, criando secções (agora chamam-se juízos) para decidir questões relacionadas com a família e menores, com as questões do trabalho, com as questões de comércio, com a litigância criminal, etc., mantendo, em paralelo, secções de competência genérica e secções de proximidade.
- Criou uma secretaria judicial única para todo o tribunal de comarca, servindo todas as secções judiciais.
- Concentrou recursos, tendo em conta a procura dos serviços de justiça.
- E fechou tribunais cujo movimento processual se vinha consistentemente a revelar diminuto, não justificando o encargo com pessoal e com as instalações.
Ao mesmo tempo, introduziu alterações significativas no Código de Processo Civil, que é, no fundo, o conjunto de normas que regula o funcionamento e a tramitação dos processos nos tribunais.
E foi mais longe: procedeu à reforma integrada do procedimento e do contencioso administrativo, sendo que o processo utilizado nos tribunais administrativos passou a ter a mesma filosofia de simplicidade que tinha sido introduzida no processo (civil) utilizado nos tribunais comuns.
4. Há uma história por fazer em relação aos movimentos que então se levantaram contra a reforma judiciária, sem ideias ou propostas construtivas, e exclusivamente centrados na luta pública contra o fecho dos tribunais. O denominador comum, na esmagadora maioria dos casos, assentou na demagogia e no populismo.
Um dos centros da contestação esteve na Ordem dos Advogados, onde se sucederam na cadeira de bastonário dois advogados que tinham no horizonte a ambição de utilizarem a sua posição institucional para darem o salto para a política (um, na ausência de qualquer outro reconhecimento, encontrou a o seu encosto dourado no Parlamento Europeu; a outra, que nunca teve reconhecimento, aconselha agora o líder do PSD, depois de ter perdido a sua reeleição para bastonária).
O “sucesso” dos dois na agitação que lideraram assentou na sua base eleitoral tradicional, que importava manter como forma de perpetuar o poder. E aproveitou-se de uma crise económica que bateu à porta de muitos advogados que, de súbito, foram induzidos a interiorizar que a reforma era uma ameaça à sua capacidade de angariação de clientela e trabalho, pelo que passaram a olhar para o fecho dos tribunais como a mãe de todas as misérias.
5. Diga-se, em jeito de parêntesis, que a advocacia, também ela, tem vindo a sofrer profundas alterações no seu ADN.
Colocam-se questões novas. E, talvez por isso, seria pedagógico abrir a discussão, por exemplo, sobre o papel da Ordem dos Advogados no exercício profissional, avaliando-se de caminho quem é que a instituição verdadeiramente representa, ou deve representar.
De âmbito mais sociológico, mas nuclear para o futuro, importaria perceber o que é ser advogado nos tempos actuais, e saber como é que a advocacia é exercida em Portugal a partir dos binómios “litoral / interior” e “grandes cidades/ pequenas cidades”.
Mas há uma outra avaliação a fazer, porventura até mais importante, que passaria por saber qual a influência no exercício profissional dos rendimentos pagos pelo “patrão” – Estado aos “prestadores liberais” – advogados no âmbito do apoio judiciário, e quantos advogados é que vivem predominantemente dessa relação profissional. E, sendo esse apoio significativo, se faz sentido manter o modelo existente de patrocínio judiciário, ou se é preferível autonomizar o Instituto de Acesso ao Direito como uma instituição independente na prestação de serviços jurídicos, não se exigindo que quem a ele adira esteja inscrito como advogado na OA, mas tão só que tenha determinadas qualificações profissionais certificadas pela Ordem…
6. Retomando o tema, as reacções à reforma de 2013 por parte da sociedade civil tiveram motivações mais prosaicas do que a guerra que lhe foi movida pela Ordem dos Advogados: tratava-se, tão só, das eleições autárquicas que viriam uns meses depois.
Tirando isso, que afinal não era pouco, foram diminutas as críticas construtivas que surgiram em todo o processo de concepção e implementação da reforma, salvo as que foram apresentadas pelas associações e sindicados dos juízes, dos magistrados do ministério público e dos funcionários judiciais.
O actual Governo não fugiu à lógica populista e lá foi a reboque dos interesses autárquicos (pois, estava à vista novo ciclo de eleições locais…) reabrindo, no início da governança, tribunais fechados e que não tinham movimento processual significativo, criando a aparência da sua efectiva utilidade. Esqueceu-se de ser coerente na demagogia: se cada concelho deve ter um tribunal, como foi dito, porque razão não instalaram tribunais nos 79 concelhos do país que em 2013 já não tinham tribunal e que em 2018 continuam a não ter?
Tudo isso já prescreveu, é certo. Mas esse passado recente deve manter-se na reserva da memória colectiva, até porque muitos dos intervenientes de então permanecem no activo e porque qualquer nova mudança precisa de aprender com as forças reactivas às anteriores…
7. Por mais que digam o contrário, mais de cinco anos passados, e com o distanciamento suficiente para olhar de forma menos emotiva para a reforma de 2013, é possível avaliá-la de forma muito positiva. Acima de tudo se a entendermos como ponto de partida e não como ponto de chegada.
Essa reforma tratou bem a especialização. Não cuidou, nem tinha de cuidar, da proximidade (o que, repete-se, não era um dos pressupostas da matriz adoptada). Houve, é certo, negligência q.b. na sua implementação, mas isso são contas de outros rosários. Dir-se-á, em síntese, que foi bem pensada, mas mal-executada, o que só ajudou à confusão mediática.
Em todo o caso, o sistema judiciário de 2013 estava preparado para que se fossem introduzindo as medidas corretivas adequadas às necessidades, em avaliações que a cada triénio teriam de ser feitas, de modo a que o número e dimensão dos tribunais fossem ajustados à procura que a sociedade reclamasse deles. Esta elasticidade era, e é, uma das suas grandes virtudes.
Só que, ao mesmo tempo, cometeu-se o erro estratégico de não se estabelecer, em paralelo com a estrutura judicial, uma jurisdição complementar de efectiva proximidade ás populações, que permitisse, essa sim, com celeridade e menor formalismo, decidir litígios de baixa intensidade. Ora, essa tarefa seria conseguida, com eficácia, se tivesse sido criada uma jurisdição periférica assente numa rede de tribunais municipais, independente da estrutura dos tribunais judicias de comarca, em substituição dos actuais julgados de paz, que deveriam ser extintos.
8. Mas para além de tudo o que já foi dito, haveria ainda a necessidade de dar um outro passo, que não foi considerado em 2013, para se criar em Portugal uma orgânica judiciária moderna e eficaz: extinguir os tribunais administrativos e fiscais, (não há que ter medo das palavras), indo, afinal, no mesmo sentido do que foi consensualizado nos “Acordos para o Sistema de Justiça”.
É inevitável que as sociedades evoluam. O mesmo acontece com as instituições.
Seria importante avançar, por isso, em sentido diferente àquele que foi anunciado pelo actual Governo, através da pena da secretária de Estado-adjunta e da Justiça, e ter a coragem de unificar a jurisdição comum e a jurisdição administrativa e fiscal.
Essa decisão teria impactos significativos a nível da eficiência, da racionalidade, dos custos e da uniformização da decisão judiciária. E é inevitável que venha a acontecer no futuro.
9. Não faz nenhum sentido manter os tribunais administrativos e fiscais integrados numa jurisdição autónoma. Só que essa reforma nunca poderá ser feita no âmbito do actual Ministério da Justiça por óbvio e claro conflito de interesses e comprometimentos com o sistema existente. (Não deixa de ser sintomático que quem assina o artigo no Expresso seja a secretária de Estado-adjunta e da Justiça e não a própria ministra da Justiça!)
Uma vez que os tribunais comuns apostaram na especialização, criando-se juízos especializados para tratar de matérias diferenciadas e específicas (cível, trabalho, comércio, crime, família e menores, etc.), o único caminho racional e ajustado aos “novos tempos” será o de criar, na actual estrutura dos tribunais judiciais, mais um juízo especializado para tratar das questões administrativas e um outro juízo especializado para tratar dos conflitos relacionados com a matéria fiscal, criando-se assim uma ordem única de tribunais judiciais de primeira instância.
Naturalmente que uma decisão dessas irá afrontar interesses corporativos instalados, que exibem uma capacidade de reacção e confronto muito superior ao dos movimentos contestatários à reforma judiciária de 2013. São mais poderosos do que bastonários populistas ou presidentes de câmara em antevésperas de eleições, porque estão sedimentados no interior das estruturas do Estado e exibem, como arma temerária, a legitimidade constitucional, como se as Constituições fossem eternas e, também elas, estivessem imunes aos ajustamentos que as sociedades reclamam.
10. Trata-se, falando claro, de extinguir o Supremo Tribunal Administrativo, cujas competências seriam transferidas para o actual Supremo Tribunal de Justiça. Trata-se de extinguir os Tribunais Centrais Administrativos, cuja função seria exercida pelos Tribunais da Relação. Trata-se de extinguir os 17 tribunais administrativos e fiscais integrando-os, como juízos especializados, nos tribunais de comarca já existentes. Trata-se de extinguir o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, passando a existir apenas um Conselho Superior Judiciário com poderes de gestão de todo o sistema judiciário.
E trata-se, no fundo, de extinguir cargos de representação institucional importantes e poderosos, porque deixa de haver lugares no protocolo do Estado para todos os pretendentes. Mas, a verdade, é que é preciso afrontar o sistema, com coragem e determinação, porque não temos alternativa: se queremos modernizar efectivamente a organização judiciária portuguesa as coisas têm de mudar e a reforma iniciada em 2013 tem de ser aprofundada e levada às últimas consequências.
Advogado