1. Sim, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça tem razão: o Tribunal Central de Instrução Criminal deve ser extinto.

2. Na entrevista ao Expresso de 15.9.2018, o Conselheiro Henriques Gaspar foi sintético, mas disse tudo:

Perg.: É suficiente haver apenas dois juízes no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), que está a fazer a instrução do caso que envolve José Sócrates?
Resp: Trata-se de um tribunal cuja existência eu nunca compreendi e que hoje em dia não tem razão de ser. As funções do TCIC deviam ser desempenhadas pelos tribunais de instrução criminal.
Perg.: O Tribunal Central de Instrução devia ser extinto?
Resp: Sim, devia ser extinto.
Perg.: Por trás da ideia do TCIC está o princípio de que esse tribunal acompanha a lógica do próprio DCIAP – juízes especializados a acompanhar o trabalho de procuradores especializados.
Resp: A circunstância de haver um DCIAP não implica haver um tribunal central de instrução criminal.

3.Defendo o mesmo. E escrevi-o no meu “Sistema Judiciário Anotado” (2ª ed. – págs. 16-17), com uma nuance em relação à sugestão do Conselheiro Henriques Gaspar que a seguir se explicará.

Em coerência, não posso aderir, por isso, ao que escreveu Luís Rosa neste jornal, dois dias depois da publicação daquela entrevista.

Luís Rosa, no seu artigo, parte de alguns equívocos. E escrever que a extinção do Tribunal Central de Instrução Criminal dá um sinal errado à opinião pública porque este foi o “tribunal que mandou prender José Sócrates”, é alinhar pela lógica populista e justiceira e não compreender a essência do que é um Tribunal de Instrução Criminal.

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Vamos por partes e em linguagem simples e corrida.

4. O Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) é um tribunal de competência territorial alargada, o que significa que tem competência sobre todo o território nacional. Os outros Tribunais de Instrução Criminal (TIC) que existem têm a sua competência limitada à área das comarcas onde estão instalados, as quais coincidem, grosso modo, com os distritos administrativos.

O que diz a lei é que “quando a actividade criminosa ocorrer em comarcas pertencentes a diferentes tribunais da Relação” a competência cabe ao tribunal central. Isto significa que os crimes que a lei inclui na competência do tribunal central podem também ser da competência de um dos tribunais de comarca, se eles forem praticados nas comarcas pertencentes ao mesmo tribunal da Relação.

Um exemplo simples. Um crime, ainda que muito sério e complexo, cuja actividade ocorra apenas no distrito de Lisboa, não cabe na competência do tribunal central, que também está a funcionar em Lisboa (onde agora estão dois juízes, mas durante muito tempo esteve apenas um), mas é da competência do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, onde estão colocados 7 juízes.

5. E que competências têm os juízes de instrução criminal?

Basicamente as de (i) exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito (ii) proceder à instrução criminal, e (iii) decidir se os arguidos são pronunciados, isto é, se são levados a julgamento.

Ou seja, numa primeira fase, durante o inquérito conduzido pelo Ministério Público, cabe ao juiz de instrução criminal (quer seja do tribunal central, quer seja do tribunal de comarca), no essencial, o seguinte:

  1. Proceder ao primeiro interrogatório judicial do arguido detido;
  2. Proceder à aplicação de uma medida de coação ou de garantia patrimonial;
  3. Proceder a buscas e apreensões em escritórios de advogados, consultórios médicos ou estabelecimentos bancários; e
  4. Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida.

Depois de haver uma acusação por parte do Ministério Público e no caso de um arguido requerer a abertura da Instrução (esta fase é facultativa na estrutura do processo criminal), cabe ao juiz de instrução criminal (quer seja do tribunal central, quer seja do tribunal de comarca), decidir se o MP agiu bem ao deduzir acusação criminal contra o arguido e, nesse caso, enviar o processo para julgamento; caso entenda que não há indícios suficientes ou que foram cometidas ilegalidades insuperáveis na investigação, o juiz de instrução criminal não deve pronunciar o arguido, não o levando portanto a julgamento.

Dizendo de outra forma: comprovando-se que há indícios suficientes da prática de um crime, mas nunca formando nenhum juízo final sobre os factos, o juiz de instrução criminal deve remeter o processo para o tribunal de julgamento onde deverá ser produzida toda a prova, para que os juízes aí possam decidir sobre a culpabilidade ou inocência do arguido. Se esses indícios não forem suficientes, o juiz de instrução criminal deve mandar arquivar o processo.

Isto é valido, repete-se, para o Tribunal Central de Instrução Criminal e para os Tribunais de Instrução Criminal das Comarcas, que têm basicamente as mesmas competências. (Nota: em rigor o tribunal central até tem menos competências do que os tribunais de comarca, mas esse facto é irrelevante para a argumentação deste texto.)

Muito mal seria pensar, por isso, que nos tribunais de comarca não há juízes competentes e especializados, capazes de exercerem essas funções com o mesmo nível técnico das que são supostamente exercidas pelos juízes do tribunal central!

6. Por aqui se vê que extinguir o Tribunal Central de Instrução Criminal não é uma machadada na especialização. Na verdade, todos os tribunais de instrução criminal, quer seja o central quer sejam os de comarca, são tribunais especializados.

Ou seja, não há juízes generalistas na instrução criminal!

7. O Ministério Público é o titular da acção penal, cabendo-lhe investigar qualquer notícia da prática de um crime. Depois de terminado o inquérito, e se concluir que existem indícios suficientes da sua actividade criminosa, o Ministério Público deduz uma acusação contra os suspeitos.

Ora, no sistema que temos, o juiz de instrução criminal não existe para carimbar as decisões investigatórias do Ministério Público, para lhe dar uma “certificação de legalidade”! O juiz de instrução criminal serve, estruturalmente, para garantir a legalidade e para garantir os direitos dos arguidos. É o juiz das liberdades, não é o juiz “que manda prender”.

No dia que houver a percepção pública de que os juízes de instrução criminal servem para “mandar prender”, teremos um problema sério no equilíbrio do nosso sistema de direitos, liberdades e garantias.

8. Em jeito de parêntesis, um comentário desviante à questão nuclear deste artigo. Ainda que a lei o não preveja expressamente – e, por essa razão, é como se não existisse – faz todo o sentido as preocupações manifestadas por alguns advogados envolvidos na Operação Marquês:um juiz que ao longo dos tempos, durante o inquérito, andou sistematicamente a validar as posições do Ministério Público, não pode ter a independência suficiente para exercer a função de juiz das liberdades na fase de instrução(ou seja, a fase que se segue à acusação, após concluído o inquérito).

Não é plausível que existam argumentos novos que possam surpreender o seu convencimento, a ideia que já formou nas várias vezes em que o processo lhe foi parar às mãos. Por mais independência que pretenda exibir, olhará para o arguido na fase da a instrução com as mesmas convicções que o levaram a validar as decisões acusatórias do MP. É um juiz comprometido com a investigação criminal. E, assim sendo, deveria estar eticamente impedidopara presidir à instrução, ou seja, para decidir se os arguidos acusados pelo MP serão levados, ou não, a julgamento.

Não me interessa rigorosamente nada o concreto julgamento da Operação Marquês. Se os factos se confirmarem os culpados deverão pagar com severidade pelos actos praticados. Se não se provarem deverão ser absolvidos. Mas interessa-me o princípio. E, genericamente falando, preocupa-me seriamente a falta de defesas e de protecções que os envolvidos em investigações criminais têm num sistema como o que existe.

9. Ter um Tribunal com um único juiz, em especial um tribunal com as competências que tem o tribunal central, afecta a sanidade de qualquer sistema judiciário. Em especial se esse lugar for ocupado por um juiz que se assuma como justiceiro e inquisidor e não perceba que o seu papel é o defender a legalidade e a liberdade. Além do mais, concentrar tanta informação relevantenuma única pessoa é um risco sério para o sistema democrático.

Para prevenir o risco dessas situações a Lei de Organização do Sistema Judiciário de 2013 aumentou de um para dois o quadro de juízes do tribunal central, atenuando um pouco o problema. Mas não o resolveu. Longe disso. Veja-se a percepção que tem sido veiculada na comunicação social, a propósito do sorteio no processo referente à Operação Marquês: a de existir um “juiz bom” e um “juiz mau”!…

10. O combate à corrupção e à criminalidade sofisticada depende de um Ministério Público forte, autónomo, competente, com meios e capaz de investigar indícios consistentes de crimes, com seriedade e sem medo de afrontar poderes instalados. Independentemente de quem os pratique,quer sejam marqueses, duques, reis e rainhas, ou que sejam ministros, bispos ou plebeus. Pela simples razão que a lei é igual para todos, não distinguindo a cor dos olhos, os títulos ou as posições sociais.

11. Mas o nosso sistema estará mais equilibrado e será mais saudável se forem adoptadas duas seguintes medidas:

  1. Criar uma norma legal que declare impedido um juiz de instrução criminal que tenha interferido na fase de inquérito (ou seja, que tenha acompanhado e sancionado as investigação do Ministério Público), de modo a que não possa presidir à instrução desse mesmo processo (ou seja à fase de pré-julgamento, destinada a saber se o processo deve, ou não, ir para julgamento).
  2. Extinguir o Tribunal Central de Instrução Criminal e repartir as suas competências pelos Tribunais de Instrução Criminal das Comarcas (como defende o Conselheiro Henriques Gaspar) ou, como tenho vindo a defender, atribuindo essas competências ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, que teria de estar mais capacitado e reforçado em termos humanos.

Advogado

(O autor não segue, deliberadamente, as normas do Acordo Ortográfico)